Kurt Hruby
Kurt Hruby Nasceu em 1921, na Áustria. A partir de 1960 professor de Hebreu Rabínico no Instituto Católico de Paris. Director da secção Conhecimento do Judaísmo , no Instituto Ecuménico. Encarregado de curso no Instituto Bíblico Pontifical (Roma). Colabora na fundação Igreja-Judaísmo, em Zurique, e edita a revista Judaica. Autor de vários volumes da colecção «Conhecimento do Judaísmo» e de artigos em revistas especializadas e enciclopédias, New Catholic Encyclopaedia, Dictionnaire de Spiritualité, etc.
Em que medida o homem, por definição limitado e «criatura», pode encontrar o Absoluto, o princípio criador, e logo Deus? Não obstante certas afirmações devidas à tendência – em si muito nobre – para exaltar Deus ao máximo e para colocar assim acima do mundo criado, a tradição judaica – é dele que aqui se trata, compreendendo o termo ao mesmo tempo tradições bíblica e pós-bíblica, em função do conceito fundamental das «duas leis», escrita e oral – considera o Deus da Revelação como um Deus acessível ao homem, um Deus ao mesmo tempo transcendente e imanente em relação ao mundo criado. Todavia, este carácter «acessível» de Deus nunca suprime a diferença ontológica entre o Deus-criador e o homem-criatura. O homem pode aproximar-se de Deus, e esta aproximação pode ir muito longe, mas não é em momento algum uma fusão que apagaria as fronteiras inscritas na própria ordem da criação.
Este encontro do divino é o fruto e a coroação de uma procura de Deus, que compromete ao mais alto grau as faculdades espirituais do homem, faculdades que dependem, aliás, do prinápio divino, chamado pela Génese nishmat hayyim (alento de vida), que Deus comunicou ao homem no momento da criação e que dele fez «um ser vivo». Assim, o grau de intensidade na união com Deus será proporcional à intensidade de envolvimento espiritual do homem. Este envolvimento e este «passo» serão, por sua vez, função da faculdade do homem de se elevar progressivamente acima dos seus próprios limites.
Esta superação pode, certamente, dar também lugar a fenómenos paranormais, bem conhecidos da mística judaica, como, aliás, de toda a mística, e pode ser acompanhada ou seguida por factos considerados habitualmente como «miraculosos», no sentido de se situarem para lá da ordem sensorialmente perceptível das coisas e por não se explicarem ao nível das leis naturais conhecidas. Todavia, na tradição judaica, os fenómenos desta ordem nunca constituem um elemento absolutamente característico e indispensável na procura de Deus.
Na perspectiva judaica, Deus revelou-se a Israel na Tora e pela Tora, de modo que esta Revelação, como «comunicação divina» por excelência, é constitutiva da existência do povo judeu. É por fidelidade incondicional aos mandamentos da Tora que o judeu se compromete numa via de experiência e de familiaridade com Deus, que é também, mas não exclusivamente, uma via mística. Para dizer como Max Kadushino, é a via de um «misticismo normal», vulgar, ao lado do qual existe também, bem entendido, um «misticismo paranormal» ou extraordinário, reservado a almas privilegiadas com faculdades espirituais particularmente requintadas. Mas, seja em que caso for, é sempre apenas a Tora que constitui o «trampolim» para esta segunda forma de misticismo, que também, sem ela, ficaria sem raízes e estaria ameaçada dos piores desvios. E fica entendido que o termo «Tora» ao nível da tradição judaica, tem sempre de ser compreendido no sentido das duas Toras, escrita e oral; esta última – que saiu da tradição rabínica – concebida como estando revestida da mesma autoridade que a Tora escrita, e normativa quanto aos modos de aplicação (Halakhah) dos mandamentos divinos.
Pela prática fiel dos mandamentos da Tora, o homem compromete-se numa imitação permanente de Deus, que é o seu autor e cujos preceitos reflectem a infinita perfeição. Graças a este esforço, o homem passa também permanentemente por uma experiência concreta de Deus, em virtude da qual se estabelece uma relação pessoal entre o seu criador e ele. É esta relação que permite ao homem comunicar com Deus, comunicação que se efectua de uma maneira preferencial na oração, cuja tradição rabínica sublinha, aliás, o carácter espontâneo, comparável a um jorro de fonte: «Quem quer que faça da sua oração (uma recitação) estereotipada, a sua oração não é uma suplicação.»
Esta experiência desemboca, por sua vez, num conhecimento de Deus, porque a verdadeira oração, a do coração, pressupõe sempre um agudo sentido de uma proximidade particular de Deus.
Na oração, a relação do homem com o Senhor, ao mesmo tempo confiante e marcada pelo temor reverencial, torna-se uma relação vivida. É este elemento que dá muitas vezes à oração o seu carácter elevadamente poético, sem que, por outro lado, se trate sempre de um efeito especialmente procurado.
Contudo, formando a Tora um todo indivisível, esta procura e esta experiência de Deus exercem-se não só na oração mas em todos os domínios em que o homem age por fidelidade e por obediência em relação à vontade de Deus que ali está expressa. Um lugar privilegiado é ocupado a este respeito pelo estudo da Tora, que, segundo a tradição, «leva vantagem sobre tudo o mais», «porque (as palavras da Tora) são a nossa vida e prolongam os nossos dias e é nelas que queremos meditar dia e noite», diz a liturgia sinagogal na bênção que precede a recitação do «Shem’a» na oração da tarde. A tradição rabínica aplica igualmente à Tora o versículo: «É uma árvore de vida para quem a compreende, aquele que a tem passa a ser feliz.» Todo o esforço de aproximação, de conhecimento, de serviço de Deus e de intimidade com Ele é, com efeito, inconcebível sem o conhecimento da Palavra revelada e das explicações autorizadas que dela dão os mestres da tradição. «Aquele que adquiriu (o conhecimento) da Tora adquiriu a vida do mundo a vir», dizem os «Pirqei Abot». «Quem quer que se ocupe (do estudo) da Tora por si mesmo», diz rabi Meïr, discípulo de rabi Aqiba, «obtém muitas coisas. E não só isso: o mundo inteiro só é considerado digno de existir por causa dele.»
Além desta mística que, portanto, de boa vontade se chamaria quotidiana, inerente à vida judaica conscientemente fiel aos imperativos da Tora, existe uma outra corrente, mais iniciática e reservada a almas privilegiadas, pelo menos durante muito tempo e antes de, por sua vez, ter sido popularizada e se tornar, durante tempos, preponderante. É próprio desta corrente não a eliminação ou a supressão da marcha «vulgar», mas a sua superação permanente, pela qual quer abrir outros horizontes ao espírito sedento de conhecimento de Deus e de intimidade com o Criador.
É nesta via que intervém frequentemente fenómenos como o encantamento místico, as visões, o êxtase, os milagres e assim sucessivamente. Esta via, dissemo-lo, mergulha as suas raízes na Tora, mas o seu objectivo é desvendar os segredos divinos inefáveis, que se escondem atrás do sentido do texto. «A Tora é santa quanto ao seu lado óbvio», dirá o rabi Yesha’yah ben Abraham Horowitz, «mas sacrossanta quanto ao seu sentido escondido.» Nesta perspectiva, o texto da Tora é comparável a um vestuário que esconde o corpo por sua vez receptáculo da alma.
O Zohar (o Livro do Esplendor Divino), tratado maior que se tornará a verdadeira Bíblia da tendência esotérica chamada cada vez mais frequentemente, a partir do século XVIII, «cabalística», explica este fenómeno no texto seguinte: «Rabi Shim’on diz: “Desgraçado do homem que pensa que a Tora quer contar-nos histórias banais (…)! Bem pelo contrário, todas as palavras da Tora são palavras superiores e (contêm) mistérios sublimes (…).
As narrativas da Tora constituem o seu vestuário (…). Existem vestuários perceptíveis para todos (…). Todavia, a importância do vestuário está no corpo, e a importância do corpo está na alma (…). Assim, a Tora tem igualmente um corpo; são os mandamentos (…). Este corpo da Tora veste-se (por sua vez) com o vestuário que são as narrativas (cujos temas são tirados) deste mundo. Quão insensatos são aqueles que não vão mais longe e não olham o que se esconde sob este vestuário. No entanto, aqueles que possuem uma ciência superior não vêem o vestuário, mas o corpo que se esconde por baixo do vestuário (…).”»
Para se poder compreender o verdadeiro sentido da Tora, é necessário, pois, como claramente diz este texto, possuir uma ciência superior e, logo, faculdades espirituais que ultrapassam o conhecimento vulgar. Desta vez, contrariamente à via mística «vulgar»’ trata-se de faculdades e de um poder que são fruto de uma verdadeira iluminação com que é gratificado o discípulo perseverante que, sob a direcção de um mestre avisado, empreende por etapas uma ascensão espiritual que o conduz aos cumes da contemplação.
Os temas preferidos de especulação e de contemplação dos adeptos da ciência esotérica são «Ma’asseh Bereshit» (a obra da criação), «Ma’asseh Merkavah» (a visão do carro divino) e, de uma maneira geral, os segredos dos diferentes nomes divinos enunciados na Santa Escritura, mais particularmente o tetragrama sagrado. É assim que se pode dizer que a cabala (e logo o esoterismo judaico) é a ciência dos nomes divinos. É, aliás, graças ao conhecimento destes nomes que o iniciado pode elevar-se para além das leis da Natureza e é capaz, na devida altura, de operar milagres.
Dado que o esforço de elevação espiritual que está na base da iniciação transporta o adepto da ciência esotérica de imediato – seja por encantamento ou por êxtase – na esfera divina, é muitas vezes acompanhado por fenómenos extraordinários. Portanto, nesta ordem de acontecimentos, estes fenómenos escapam totalmente ao controlo dos sentidos e logo não são «verificáveis».
Já, pelas suas origens, o contexto cultural onde se inscrevem as tradições bíblicas rabínica e, com mais forte razão, esotérica está profundamente impregnada do numenoso e a realidade dos fenómenos paranormais está ali universalmente aceite-o conjunto da tradição judaica é fortemente marcada pela omnipresença, a todos os níveis, do facto «miraculoso», que não é próprio apenas do seu esoterismo e do seu desenvolvimento cabalístico.
A doutrina de «santo Ari» tende para o ascetismo
Antes de analisar o «milagre» ao nível da fé e de tentar definir o seu verdadeiro lugar na Bíblia e no rabinismo antigo, digamos que, no que se refere ao esoterismo judaico, o fenómeno miraculoso torna-se ali quase quotidiano quando a corrente mística, após o rabi Isaac Louria de Safed, o «santo Ari», passa a ser um movimento cada vez mais popular e durante dois séculos a quase totalidade do mundo judaico será submetida ao Mûssar ha-Ari, à doutrina moral e mística do mestre, fortemente marcada por uma tendência ascética, muito acentuada. Em virtude da concepção eminentemente positiva do homem e do mundo que prevalece, regra geral, na Bíblia, a corrente ascética é sempre bastante secundária no judaísmo, o que não o impede, aliás, de já estar presente na própria Santa Escritura e, mais tarde, no mundo das seitas (essénios, Qûmram), em Fílon de Alexandria, na tradição rabínica, na filosofia religiosa da Idade Média e na mística.
Enquanto o Mussar ha-Ari, não obstante a sua grande popularidade, continua ainda a ser no fundo, um esforço elitista, a via mística tornar-se-á efectivamente a via de toda a gente no hassidismo polaco do século XVIII, cujo fundador, o rabi Israël ben Eli’ézer, o Ba’al Shem Tov (mestre do nome divino) substituirá o elemento austero inerente ao método de Louria pela ordem libertadora: «Servi o Senhor na alegria!» Graças ao seu grau de união a Deus, o Ba’al Shem e os outros mestres hassidicos, os Tsaddiqim, serão os taumaturgos por excelência, para que o milagre se torne um facto habitual, o Tsaddiq, sendo justamente o «justo realizado», o homem que realiza ao mais alto nível a união mística permanente com o Criador, e que é, portanto, capaz de exercer uma influência directa sobre o mundo divino. Inúmeras «histórias hassídicas» põem em relevo os poderes extraordinários do Ba’al Shem e dos epígonos. Muito significativa a este respeito é a história seguinte, que resume bem a omnipresença desta ambiência maravilhosa.
Salomão de Radomsk perguntou um dia ao rabi Hayyim de Zanz se as histórias que se contavam do Ba’al Shem eram verdadeiras. «Não sei», respondeu o rabi Hayyim, «se elas são verdadeiras e se as coisas que se contam se passaram efectivamente. Não vivi nessa época. Todavia, posso afirmar que o Ba’al Shem tinha o poder de operar milagres e que lhe era até fácil ressuscitar mortos.»
Na mais pura tradição cabalística, o Ba’al Shem efectuou também «ascensões místicas», de que a mais célebre é a descrita no final do livro Ben Porat Yossef, do rabi Jacob-Joseph ha-Kohen de Polnoyé, o «biógrafo» do fundador do hassidismo. O rabi Israel exprime-se sobre tal como se segue: «O dia de Rosh ha-Shanah (novo ano judaico) do ano 5507 (Setembro de 1746), operei, por via de conjuração (mística), a elevação de alma bem conhecida (…). Numa visão, vi coisas maravilhosas como nunca mais vi depois que retomei consciência (dos meus poderes espirituais) (…). Após a minha descida (das regiões superiores) ao jardim do Éden inferior, vi inúmeras almas de vivos e de mortos (…). Todos me suplicaram unanimemente dizendo: “Deus dotou-te com uma inteligência superior, permitindo-te conceber estas coisas e conhecê-las. Sobe, pois, connosco e ajuda-nos!”
Elevando-me de degrau em degrau, cheguei ao local onde o messias estuda a Tora em união com os tanaitas (mestres da Mishna) e os justos. Notei que reinava ali uma grande alegria (…) porque se experimentava satisfação acerca das “unificações” (uniões místicas com Deus) que eu opero graças à (conhecimento místico) Santa Tora (…).»
O «milagre», como dissemos, está tão omnipresente na tradição rabínica antiga, aliás, por vezes, relacionado com práticas mágicas que se encontram também noutras tradições. Eis um exemplo deste género, tirado da Mishna: «Aconteceu (um dia) que se dizia em Honi, o traçador de círculos (mágicos): “Reza para que a chuva se ponha a cair!…” Ele rezou, mas sem êxito. Que fez então? Traçou um círculo, colocou-se no meio e disse na presença (de Deus): “Senhor do Universo, os teus filhos têm os olhos postos em mim como se eu fosse teu familiar. Conjuro-te pelo teu grande Nome que não me mexerei daqui até que tenhas piedade dos teus filhos!” Então gotas (de chuva) começaram a cair. (Honi) diz: “Não foi isto que eu pedi! (Pedi) aguaceiros (capazes) de encher cisternas, fossos e cavernas!” Então pôs-se a chover a cântaros. (Honi) volta à carga: “Não foi isto que eu pedi! (Pedi) chuvas de benevolência, de bênção e de clemência!” Começou então a chover como era preciso…»
Certos mestres eram afamados pelo seu poder de operar milagres graças à sua extraordinária piedade, tal como, no primeiro século, o rabi Hanina ben Dossa, cuja oração de intercessão era particularmente eficaz a favor dos doentes.
«Um dia, o rabi Hanina ben Dossa foi procurar o rabi Yohanan ben Zakkaï para estudar a Tora. Ora o filho do rabi Yohanan adoeceu e pediu (a Hanina): “Hanina, meu filho, implora para ele a misericórdia (de Deus) para que recupere a saúde!” (Hanina) meteu então a cabeça entre os joelhos, implorou para ele a misericórdia (de Deus) e (o filho de Yohanan) curou-se. O rabi Yohanan disse então: “Se Ben Zakkaï durante todo o dia tivesse metido a cabeça entre os joelhos, não lhe teriam prestado atenção!” Disse-lhe sua mulher: “Será que Hanina é mais importante do que tu (que, no entanto, és o chefe da academia)?” Ele respondeu-lhe: “Não, mas ele é como o servidor diante do rei (ou seja, que é familiar com Deus), enquanto eu sou como um príncipe em frente do rei.”»
O Talmude conta ainda muitos outros factos miraculosos que se deram com outros mestres. Assim, as águas de um rio dividiram-se três vezes pela intervenção do rabi Pinhas ben Yaïre. Como consequência da oração de Naqdimon ben Gorion, um dos três homens opulentos que garantiram o abastecimento de Jerusalém quando do cerco da cidade pelos Romanos em 70 a. C., o dia alongou e o Sol já posto recomeçou a brilhar. A propósito de certos mestres, os textos dizem com todas as letras que estavam «habituados ao milagre», por exemplo rabi Nahûm de Guimzo.
A tradição rabínica refere, aliás, que a frequência do facto milagroso tem tendência a diminuir na época talmúdica para falar com propriedade (mais ou menos a partir de 230 a. C.). Assim, Rab Papa, mestre babilónico do século IV, levanta a questão: em que medida as gerações precedentes eram diferentes da sua, de modo que os milagres eram tão frequentes, enquanto no seu tempo se tornavam mais raros? Abbayé, o chefe da Academia de Poumbedita, na Babilónia, responde dizendo: «As gerações anteriores estavam prontas para fazer o sacrifício da vida para santificação do nome de Deus, enquanto nós já não estamos.» No entanto, ainda se dão milagres no tempo do Talmude e conta-se, por exemplo, que Mar bar Rabina, outro mestre babilónico do século IV, conhecido pela sua intensa piedade, atravessava um dia um vale árido. Teve sede, um milagre se deu então a seu favor e uma fonte jorrou instantaneamente.
Todavia, o milagre por excelência é, evidentemente, o milagre bíblico de que o maior, segundo a tradição judaica, é a Revelação do Sinai e o dom da Tora, e logo o facto de Deus infinito, na Sua misericórdia, ter entrado em contacto com a Sua criação e feito aliança com o Seu povo. Esta «comunicação divina» está também no centro das teofanias da Bíblia, das diversas manifestações de Deus, de que a mais importante, e ao mesmo tempo, a mais significativa, é igualmente a do Sinai. Deus manifestou-se de diferentes maneiras, no decurso da história bíblica, a personagens de primeiro plano: os patriarcas, Moisés, os profetas. No entanto, só Moisés viu Deus «cara a cara» (Êxodo 33:11), porque foi por seu intermédio que Deus deu a Israel a Tora, a qual por esta razão é, aliás, chamada a Tora de Moisés (Malaquias 3:22). Foi ainda apenas a Moisés que Deus revelou o seu nome na sarça ardente e a sua visão profética que constitui uma experiência absolutamente única. O Midrash exprime-o da maneira seguinte: «Qual é a diferença entre Moisés e todos os outros profetas? (…) A visão dos (outros) profetas passou através de nove lentes (specularia)…, enquanto a de Moisés passou por uma só lente (…).» É assim que Maimónides, nos seus «Treze Artigos da Fé», pode dizer (art. 7) que Moisés era «o pai (o maior) dos profetas, tanto daqueles que o precederam como daqueles que vieram depois dele».
A tradição judaica tem, aliás, plenamente consciência que mesmo as teofanias são experiências espirituais e logo puramente interiores. Eis o que diz a este propósito um Midrash antigo, Mekhilta de Êxodo: «Nem Moisés nem Elias se elevaram (realmente), nem a Shekhinah desceu (…).» A finalidade da teofania, seja ela apercebida colectivamente, como no Sinai, ou individualmente, é o «Guillûy Shekhinah», a manifestação de Deus como de um Deus particularmente próximo do homem. Na teofania, esta presença torna-se perceptível ao nível dos sentidos e é, portanto, igualmente e ao mesmo tempo manifestação da intimidade com Deus e, ao nível individual, da intensidade da união com Deus. Muito logicamente, o «Guillûy Shekhinah» está, aliás, associado, por sua vez, pela tradição, à oração, ao estudo da Tora e à prática dos mandamentos. «Todo aquele que sai da sinagoga e se dirige à casa de estudo para se ocupar da Tora é considerado digno de acolher a face da Shekhinah.»
Todo o milagre e, com mais forte razão, o milagre bíblico, vai em si contra aquilo a que a tradição chama «sidrei bereshit» ou «sidrei ‘olam», a ordem das leis estabelecidas por Deus e que regem o Universo. O milagre é, portanto, uma alteração desta ordem e uma infracção em relação a ela, e é nisso que reside a dificuldade que oferece ao nível da interpretação tradicional.
É assim que no seu Guia dos Extraviados, Maimónides faz notar que, para acreditar na ordem da criação estabelecida por Deus, que é uma ordem imutável em relação à qual não pode haver derrogação, é necessário não acrescentar fé ao milagre. Para que o milagre, no entanto, se torne possível, Deus teve de prever, no próprio momento da criação desta ordem, as derrogações susceptíveis de serem necessárias no curso da História. Nisso, Maimónides, que será acusado com demasiada facilidade de «racionalismo», não faz mais do que retomar certas afirmações da tradição rabínica antiga. É assim que se pode ler, por exemplo, em Génese Rabbah:
«Rabi Yohanan (Nappaha) disse: “O Santo, bendito seja ele, estabeleceu um contrato com o mar (Vermelho), em virtude do qual ele devia dividir-se na frente dos Israelitas (…).” Rabi Jeremias ben Eli’ézer disse: “Não foi apenas com o mar (Vermelho) que Deus estabeleceu um contrato, mas com todas as coisas criadas durante os seis dias da Criação”; como ele disse (Isaías 45, 12): “Fui eu que fiz a Terra, criei a humanidade que a habita. Fui eu que com as minhas mãos desfraldei os céus e dei ordens a todos os seus exércitos; dei ordem ao mar (Vermelho) para se dividir, aos céus para estarem silenciosos perante Moisés”; como ele disse (Deuteronómio 32, 1): “Céus, escutai, eu falarei: terra, escuta o que vou dizer! Fui eu que ordenei ao Sol e à Lua que parassem em frente de Josué, aos corvos que alimentassem Elias, fui (também) eu quem deu ordem ao fogo para não prejudicar Ananias, Misael e Azarias, aos leões que não ferissem Daniel, aos céus para se abrirem perante Ezequiel e ao peixe que vomitasse Jonas.”»
Numa mesma ordem de ideias, a tradição rabínica ensina ainda que um número de coisas que, no futuro, iam constituir o ponto de partida de factos miraculosos, foram criados especialmente por Deus na véspera do primeiro sábado pelo crepúsculo, tais como a abertura da terra que ia engolir Cora e os seus partidários, o poço do deserto, a boca da burra de Balaão, o arco-íris, o maná, o bastão de Moisés e assim em diante. Certos mestres têm, aliás, muito claramente tendência para querer limitar o milagre, por causa do seu carácter excepcional, apenas ao período bíblico, e fazem notar, por exemplo, que o tempo dos milagres chegou ao fim, quer com o período de Ester, quer com a consagração do Templo pelos Macabeus.
Para resumir, podemos dizer que a atitude da tradição rabínica em relação ao milagre é bastante ambígua. Aliás, seria errado identificar o milagre apenas com o facto espectacular atingindo fortemente a imaginação. No fundo, mesmo as coisas que consideramos como inteiramente naturais são ainda, de certo ponto de vista, milagres permanentes de Deus, como diz o Midrash: «Todos os dias, tu operas em nosso favor milagres e prodígios, e ninguém disso se apercebe.»
O facto de o homem encontrar com que comer todos os dias é, também, um «milagre» permanente do mesmo género.
A mesma ideia está, aliás, expressa na Birkat Modim (a oração de acção de graças) das Dezoito Bênçãos: «Nós te damos graças (…) pelos teus milagres de todos os dias para connosco e pelos teus rodigios e tuas mercês de toda a hora, da tarde, da manhã e do meio-dia (…).»
Esperar pelo milagre e expor-se deliberadamente a um perigo nesta perspectiva é, aliás, formalmente reprovado pelos mestres. «Lá onde o perigo é iminente», diz o Talmude, «não é preciso contar com um milagre.» Em caso algum um milagre pode influenciar uma decisão halakhica, como sobressai da célebre discussão entre o rabi Eli’ézer ben Hyrkanos e os outros mestres reunidos na Academia de Jabné. Em apoio da sua decisão halakhica, o rabi Eli’ézer opera um certo número de milagres, e, finalmente, intervém mesmo uma voz celeste a favor da sua opinião. No entanto, os outros mestres recusam todas estas manifestações, fazendo intervir a passagem do Deuteronómio: «A Tora não está no Céu»; desde que a Tora foi dada a Israel no Sinai, até o Céu já não tem de intervir na sua interpretação, que é exclusivamente domínio dos mestres do ensinamento tradicional. Enquanto, no plano bíblico, o milagre é acima de tudo ness (sinal), quer dizer, um sinal destinado a impressionar a imaginação, é, na concepção rabínica, mais a expressão da solicitude de Deus, uma manifestação benéfica que é preciso aceitar com reconhecimento, mas que não se deve procurar.
É, finalmente, esta visão equilibrada do fenómeno paranormal e miraculoso que é da grande tradição judaica, não obstante a frequência do facto miraculoso nos escritos rabínicos e, mais particularmente, na tradição esotérica. Bem entendido, o universo espiritual dos mestres está povoado por anjos e demónios, por manifestações mágicas, e podemos, portanto, observar, nesta tradição, mais ou menos todos os fenómenos desta ordem que se encontram também em tantos outros sistemas espirituais. Todavia, este elemento, no judaísmo, nunca é verdadeiramente central e explica-se em muito grande parte por influências sucessivas exercidas por outras culturas e civilizações.
Mesmo uma verdadeira procura de Deus, e logo o empenhamento ao mais alto grau das forças do espírito no passo mais nobre que se possa conceber, pode muito bem dispensar totalmente todo o fenómeno extraordinário e paranormal e pode, portanto, ser puramente espiritual e interior, como o demonstra, à evidência, o passo admirável traçado num tratado que, durante longos séculos, foi o verdadeiro livro de cabeceira de gerações de judeus piedosos: os Deveres do Coração, de Bahyah ben Joseph ibn Paqûdah (século XI).
Do mesmo modo que o esoterismo judaico sofreu múltiplas influências de fora que o marcaram em profundidade, assim Bahyah se inspira nos seus conceitos e na sua formulação – o tratado original está redigido em língua árabe, na mística e na teologia muçulmanas, o que não o impede de produzir uma obra autenticamente judaica. Depois de ter descrito os diferentes graus de ascensão progressiva da alma, Bahyah, por um verdadeiro passo místico, de onde, no entanto, está excluído todo o fenómeno paranormal chega finalmente ao décimo e último grau, o do puro amor de Deus. Este amor traduz-se e concretiza-se pela adesão plena, sem falha, que não é embaciada dali em diante por nenhuma aspiração impura, ao Deus único que está no centro da experiência espiritual de Israel, ao Deus que o povo confessa no Shem’a Yisraël. Assim se realizam para o homem, fiel ao ensinamento da Tora, e sem que tenha de passar por passos situando-se para além das faculdades vulgares, a plena união à luz inefável, a integração da alma na esfera divina e a contemplação de Deus num puro impulso de amor.
Ao longo da sua história, sempre o judaísmo foi marcado assim por duas tendências: por um lado, um esforço permanente de fidelidade integral às exigências da Tora, revestindo muitas vezes um aspecto jurídico, e, por outro, a superação permanente deste aspecto por um passo envolvendo ao mais alto grau os poderes do espírito humano. Segundo as épocas e as influências culturais, este passo revestiu diferentes formas, não excluindo os fenómenos paranormais, o maravilhoso, mesmo o elemento fantástico, mas submetendo-o sempre, em último lugar, ao controlo da Tora e, assim, da razão, que é próprio do homem. Desta maneira, todos os poderes do espirito humano convergem, finalmente, no sentido de uma procura única que, essa, continua sempre idêntica sob formas variáveis até ao infinito, e que é o primeiro mandamento da Tora na ordem da hierarquia dos verdadeiros valores: «Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu poder.»
Kurt Hruby