A.-M.Cocagnac
O texto que vai seguir-se não pretende ser mais do que um despertar. O olhar que os Indianos lançaram à sexualidade depende de um hábito muito antigo. No decurso das idades modificou-se. Neste domínio, como noutros, a tradição indiana é um rio de múltiplos braços, com os seus turbilhões, as suas contracorrentes, os seus bancos, os seus rápidos. Sobrevoámo-lo quando apenas uma descida no leito do rio poderia revelar-nos toda a sua riqueza.
Talvez alguém se surpreenda por não encontrar aqui nenhuma menção do Kama-sutra, que ainda recentemente se apresentava como um «manual de erotologia hindu». Ele arrisca-se muito a decepcionar o simples curioso: também não era essencial para o nosso propósito. Enfim, é um livro que dá, sobretudo, informações sobre a psicologia de uma certa tradição indiana. Depende do género de «tratado», tal como os Indianos a entendem: uma compilação que revela um gosto excessivo pela classificação. Pressupõe, assim, uma paixão pelas definições verbais que não deixam de ter valor poético. Nesta obra dedicada aos «poderes do espírito», uma outra linha de investigações se impunha. No canal do hinduísmo observa-se, efectivamente, a afluência de tradições anteriores ou paralelas ao vedismo. Seguimos, portanto, a corrente do grande rio: o Veda antigo e a mitologia xivaíta, tentando ver como cada contribuição anterior podia engrossar a vaga original da religião dos Árias. O tantrismo colocava um problema novo. Não se tratava de resumir a teoria e a prática do ioga tantrico: as obras de Arthur Avalon e as recentes investigações sobre os textos caxemirianos não poderiam ser resumidos. Tentámos, portanto, libertar o espírito de um campo anexado pelo hinduísmo, mas que, acreditamos, ultrapassa o tempo e o local. Uma bibliografia sumária permitirá aos leitores encontrar uma via de acesso fácil a uma tradição que passa tanto pela iconografia como pelo texto escrito.
A simbólica original Ao nível do Veda mais antigo, é difícil falar de uma metafísica da sexualidade, se por tal se entender uma ordenação coerente de noções. As primeiras meditações cosmogónicas têm por ponto de partida as realidades simples, quotidianas, de uma civilização arcaica. O ofício de tecer é um dos primeiros objectos desta contemplação. O sacrifício, que repete de uma maneira ritual o que a criação primeiro fez aparecer, toma o aspecto de uma tecedura. «O Sacrifício que, de todos os lados, é armado com fios, que se alonga por cento e um actos divinos,
estes Padres que aqui vieram o tecem sentados no tear armado: tece para a frente, tece para trás, dizem eles.»
«É um varão quem estende, quem estica o fio, um varão que o estendeu no firmamento aqui estão as causas essenciais.
Tomaram lugar no banco; As lançadeiras a tecer, eles compuseram melodias.»
Os gestos rituais, os hinos, as melodias, não fazem mais do que continuar uma urdidura primordial que o hino anterior do mesmo Rig Veda explica de uma maneira mais clara:
«No princípio as trevas cobriam as trevas,
tudo o que se vê não era mais do que onda indistinta.
Encerrado no vazio, o Vindo a Ser
o um teve então nascimento pelo poder do calor.
Começou por se desenvolver o Desejo,
que foi o primeiro germe do Pensamento
Procurando com reflexão nas suas almas os sábios
encontraram no não ser o lugar do ser.»
«A sua ourela estava esticada na diagonal:
Qual era o direito, qual era o avesso?
Houve portadores de sémen, houve virtudes,
em baixo era o Instinto, em cima era o Dom.»
O texto faz-nos assistir ao nascimento da filosofia da sexualidade. Todavia, num sentido, o passo é muito diferente daquele que os Ocidentais tentariam espontaneamente. Estes procuram efectivamente explicar, justificar realidades humanas por princípios superiores, os Indianos apreendem desde a origem o estado primordial do «calor» e do desejo antes mesmo da divisão em sexos masculino e feminino. A famosa diagonal que une o «alto», o dom e os portadores de sémen ao «baixo», domínio do instinto e das virtudes parece afastar-nos da imagem do tear. Na realidade, este tema é tão fundamental, tão tradicional, que não está ausente do texto.
Traduz-se aqui por «calor» o termo indiano tapas, que alude ao aquecimento inicial, origem da criação. Este termo designará também o processo que permite aos mais antigos yogis transmutar a sua energia sexual em poderes sobrenaturais. Calor e desejo são aqui o germe do pensamento: esta sublimação inicial e misteriosa permite aos primeiros sábios «encontrar o não ser no lugar do ser». Assim se afirma desde o começo uma metafísica do sexo de um tipo bem particular. Não se trata, efectivamente, de situar a realidade sexual no quadro de um sistema filosófico. Para o Veda, o aquecimento genital serve de ponto de partida a uma reflexão sobre o pensamento, e esta genética cósmica permite resolver o problema crucial de toda a metafísica: as relações do ser e do não ser.
Mas, se o tear é um dos primeiros instrumentos respeitantes ao vestuário, o almofariz vem à cabeça de toda a bateria de cozinha e tinha também de atrair a atenção dos sábios. Sabe-se que no Veda primitivo uma misteriosa beberagem, o «soma» ocupa um lugar muito especial. O pisar das plantas que tinham de dar o seu suco para elaborar este licor conhecia diversas modalidades. Por vezes solene, o rito revestia também formas mais simples. O Rig Veda deixou-nos cantos que celebram o almofariz de pedra e o pilão de madeira que eram usados para extrair a essência da planta sagrada:
«Vai, ó Indra, lá onde a pedra de larga base está levantada para a pisa,
e engole o soma que é esmagado no almofariz!
Vai, ó Indra, lá onde as duas mós do lagar são feitas como os órgãos genitais,
e engole o soma que é esmagado no almofariz!
Vai, ó Indra, lá onde a mulher faz esforço e para a frente e para trás,
e engole o soma que é esmagado no almofariz!
Vai, ó Indra, lá onde se puxa o pilão como as rédeas para dirigir o cavalo,
e engole o soma que é esmagado no almofariz!»
Um outro hino compara as pedras do almofariz com diferentes animais fecundos; elas estão na origem da vida e «depositam em abundancia o esperma do soma, brilhante sol».
As duas partes do lagar ritual são assimiladas a órgãos genitais capazes de dar aos próprios deuses um vigor novo.
«Quando bebeu da doce beberagem trazida por elas, Indra cresce, torna-se touro.»
Certamente, ao nível destes textos, a erotização não é o único processo literário. Para dizer a verdade, o pulular das imagens é tal que o conjunto ganha um aspecto surrealista a que seria vão censurar a aparente falta de coerência. A referência erótica representada, todavia, uma raiz profunda do pensamento indiano antigo, apoia aqui o tema de «infusão da vida», que é um dos eixos principais da mitologia do «soma».
O Atharva Veda descreve demoradamente a entrada do Brama no corpo humano. Quando o demiurgo terminou o seu trabalho, uma assembleia numerosa de deuses veio conferir a este organismo os dons mais diversos. Uma estrofe evoca a própria matéria do sacrificio e, em especial, a da manteiga ritual:
«Transformando em osso a acha para queimar
Eles depositaram as oito águas
Transformando em esperma a manteiga ritual
Os deuses fizeram a sua entrada no Homem.»
Assim, uma vez mais, a dimensão sexual do organismo humano é relacionada com o acto sacrificial.
Os Upanixades constituem o fim do ensinamento do Veda e o seu florescimento. Logo, é importante lançar um olhar para este domínio a fim de localizar alguns marcos no caminho da filosofia do sexo elaborada pela tradição indiana. A Brihad-Aranyaka-Upanixades merece, segundo este ponto de vista, uma menção especial. No primeiro plano dos sábios que dispensam o ensinamento fundamental deste texto, encontra-se um certo Yajñavalkya, cuja doutrina ia servir de base a muitas especulações ulteriores. Desde a primeira lição, vemos retomar os temas antigos do ensinamento védico, que entendem explicar as razões da criação usando uma temática erótica. É-nos revelado, com efeito, que o âtman (a alma individualizada) existia originalmente sob a forma de Purusha (o homem primordial). Este homem olha à sua volta, apercebe-se de que está sozinho: tem medo, raciocina e diz para consigo que não poderia ter medo de nada, uma vez que está sozinho. O problema, no entanto, não parece resolvido: este medo é, na realidade, a angústia inexplicável da solidão. O texto diz então: «Também não havia o prazer: eis a razão por que o prazer não é para aquele que está só. Ele desejou um segundo. Ora ele tinha a amplitude de um homem e de uma mulher que se mantêm abraçados. Dividiu-se em dois: dali surgiram o esposo e a esposa. Eis a razão por que Yajñavalkya disse: “Somos individualmente (…) cada um uma metade.” Eis a razão por que o vazio deixado é preenchido pela mulher. Ele une-se a ela: dali nasceram os homens.»
Um artificio mitológico vai permitir explicar a universalidade da sexualidade. A esposa nascida do homem, confusamente enlouquecida por este incesto primordial, tomará a forma de diversas fêmeas animais. Perseguida pelo macho, ela será a causa da divisão dos sexos entre os animais. Assim, sendo o homem original voluntariamente sexuado, estará na origem desta distinção universal fundamental entre os machos e as fêmeas.
O texto dos Upanixades prossegue por uma evocação mitológica surpreendente, mas muito importante.
O homem primordial «esfregou assim [isto pressupunha o apoio de um gesto que a tradição literária não transmitiu], e da sua boca como matriz, com as suas mãos, produziu o fogo. Eis a razão por que boca e mãos são sem pêlos no interior; porque a matriz é, no interior, sem pêlos».
Deste gesto, de um erotismo evidente, vai nascer uma criação nova, o esperma é agora identificado como o «soma». O fogo no qual se lança a oferenda da beberagem sagrada é declarado «comedor de soma». O homem encontra-se, deste modo, pela harmónica espiritual e sexual do sacrificio, capaz de operar uma «sobrecriação» ou, como diz o texto, uma «emissão para o alto». O sacrifício, com efeito, alimenta os deuses, revigora-os, o homem mortal está, portanto, em condições de realizar uma obra que o ultrapassa. Os Upanixades concluirão: «Pertence a esta sobrecriação o que sabe assim.» O conjunto deste texto tem por finalidade revelar uma dupla sexualização da natureza humana: por um lado, o homem e a mulher estão na origem da sexualização das espécies, mas, por outro, há em cada ser humano um aspecto feminino e masculino. O acto de amor entre estas duas partes de um mesmo ser conduz a um poder espiritual que lhe permite elevar-se acima da sua natureza. O autor, efectivamente, arruma de um lado a boca, a matriz, o fogo, e, do outro, o esperma e o seu análogo espiritual, o soma. A relação «comedor-comido» é, de facto, uma relação de integração que permite reencontrar a unidade de uma natureza superior. Esta auto-sobrecriação é, pois, realmente a conclusão de um processo espiritual que encontra na actividade sexual todos os seus elementos fundamentais, tanto do ponto de vista da explicação como do da realização. Esta maneira de proceder, tipicamente «upanixádica», usa um dos dados míticos que dependem menos da efabulação que de uma reflexão em profundidade sobre o mistério das coisas. A narrativa em forma de fábula é um quadro ligeiro que parece cheio de uma experiência profunda das realidades espirituais. O texto relata aqui um ensinamento mais vivido que raciocinado. Estamos a mil léguas da alegoria abstracta, mas, bem mais em contacto com práticas que, por serem mencionadas em filigrana, não deixam, por isso, de ser menos reais e poderosas.
Para terminar esta evocação da reflexão védica sobre o mistério do sexo, é conveniente determo-nos um pouco sobre o capítulo IV da sexta lição dos Upanixades, que acabamos de citar. Ali se encontra um verdadeiro tratado da arte amorosa. A sua antiguidade faz dele um documento muito notável de uma tradição que não se contenta em propor práticas, delas dá também a justificação espiritual: «Dos seres da terra é o suco, da terra as águas, das águas as plantas, das plantas as flores, das flores os frutos, dos frutos o homem, do homem o esperma.»
O texto revela-nos então que o demiurgo Prajapati, tendo considerado este homem, decidiu dar-lhe um ponto de apoio: criou a mulher e colocou-a sob o homem. Mais uma vez, os Upanixades põem em correspondência o aspecto físico das realidades e a sua dimensão profunda. A posição inferior da mulher é, na realidade, uma força: ela garante o homem contra as angústias de uma situação solitária. O homem ergue então «esta pedra-de-“soma” que se erige do seu próprio corpo para impregnar a mulher». Reencontramos aqui os dados da mitologia da pisa da planta sagrada. Ao par sexo-pilão corresponde o do esperma-«soma»; quanto ao corpo da mulher, é, bem entendido, o almofariz, mas também o altar e o território sacrificial. No seu seio arde um fogo semelhante ao do sacrifício.
É então que intervém uma curiosa consideração. Aquele que conhece este mistério não só não perde vigor nem mérito, como se apropria da força e boas acções do companheiro. Trata-se, portanto, de um frente-a-frente espiritual, no termo do qual o vencedor é aquele que atinge o mais alto grau de consciência. A tradição indiana, com efeito, liga muitas vezes o vigor sexual físico com o seu harmónico espiritual. Gastar a primeira pode equivaler a perder a segunda. Uma certa desconfiança se exercerá em relação à mulher: ela pode causar ao homem um grande prejuízo espiritual, fazendo-o perder, inesperadamente, o seu sémen. Este temor estende-se também a todos os derramamentos involuntários. Eis por que os Upanixades propõem uma oração que tem por finalidade conservar no orante a sua energia espiritual.
«Este esperma que hoje se escapou de mim para a terra,
Que correu nas plantas e nas águas,
Este esperma eu o retomo;
Como me volta a vigor,
Me volta a força, me volta a felicidade;
Que fogos e altares retomem regularmente o seu lugar.»
«E, tomando-o com o anelar e o indicador,
que se esfregue nos seios ou entre as sobrancelhas.»
A alusão ao lugar dos fogos e dos altares mostra claramente que a sexualidade humana esta situada numa visão cósmica que une a ordem da criação primitiva à dos actos físicos naturais por intermédio do sacrifício. Certamente que o texto menciona também um uso mágico desta correspondência. O homem pode também decidir a mulher a ceder-lhe. Um marido pode também amaldiçoar o amante de sua mulher: «Fizeste uma libação no meu fogo, tomo-te o teu alento.»
Particularmente interessante é a passagem que parece aludir a práticas de fecundidade controlada pelo domínio da respiração.
«Se ele deseja que ela não conceba, que, unindo-se a ela, aplicando a boca na sua, depois de ter inalado, que exale dizendo: “Pelo meu vigor, pelo meu esperma, tomo o teu esperma”, e ela é privada de esperma. Mas se ele deseja que ela conceba, que, unindo-se a ela, unindo a sua boca à dela, depois de ter inalado que exale dizendo: “Pelo meu vigor, pelo meu esperma, eu deposito em ti o esperma”, e ela fica grávida.»
O capítulo termina por uma ritualização do acto amoroso, que pretende atingir a sua maior fecundidade: entendam por isto, para um brâmane, o facto de ter um filho instruído, célebre, mestre em Veda, grande orador e questionador no seio das assembleias, sábias. Este ritual prevê uma refeição de carne, uma libação de manteiga derretida, abluções. Invocações assimilam então o corpo dos dois participantes a realidades cósmicas: «Eu sou o céu e tu és a terra.» Os gestos mais íntimos são os de uma génese. As invocações aos deuses multiplicam-se:
«Que Vixnu prepara a matriz, Que Tvastar amolde as formas, Que Prajapati transborde, Que Dhatar deposite em ti o germe.»
Os ritos do parto, os do acolhimento da criança, do agradecimento da mãe, mantêm-se na mesma linha espiritual.
Assim, o Veda dos hinos, como o dos Upanixades oferecem-nos uma visão muito original da sexualidade. A energia criadora situada no coração e no corpo do homem está em ligação directa com uma força cósmica inesgotável. Os próprios deuses participam desta força sem a esgotarem. Subtis analogias entre as realidades sexuais e os elementos do sacrifício permitem ao homem servir-se da sua força de fecundidade para subir até à ordem primordial. Certamente não estamos aqui ainda na ordem da mística pura: o triunfo humano permanece no horizonte do desejo. O «paradoxo» védico é, sem dúvida, menos estranho do que realmente se pretende dizer. Os Árias sabiam ler o invisível no material, o espiritual no corporal e, sem dúvida, para além da glória deste mundo, a passagem a um mundo superior. Quanto ao prazer ligado ao jogo dos sexos, sem dúvida que alcançava a beatitude do demiurgo quando fazia nascer das trevas e do caos a ordem luminosa de todas as formas da vida.
O último dos quatro Veda oferece-nos um poema da mais alta importancia para compreender a transposição espiritual da actividade sexual. O texto permite, além disso, estabelecer uma ligação com a tradição amplamente desenvolvida ulteriormente e centrada em torno do culto de Xiva.
Ali se descreve o estado espiritual e a actividade do rapaz que a iniciação transformou em discipulo. Tornou-se um «bramacarin», «aquele em quem se desencadeou a operação do Brama». O discípulo apresentava-se ao mestre com uma acha na mão: significava, desse modo, a sua vontade de conservar o fogo doméstico da casa de seu pai espiritual. Este fogo era para os Indianos de natureza divina, era Agni, o comedor de oferendas, o mensageiro de todas as intenções, de todas as orações, de todos os desejos humanos. A adopção do discípulo tomava uma forma ritual de gestação nova. O «bramacarin», reduzido a um embrião, era, em espírito, levado durante três dias no ventre do mestre. Pelo seu nascimento, entrava num mundo divino. Notemos de passagem que a psicologia contemporânea por vezes realçou, em certos homens, uma necessidade física de maternidade. Este ritual de «gravidez» espiritual certamente que interessou um espírito como o de Groddeck.
O discípulo assim «re-nascido» ocupa um espaço sem dimensões; está revestido de ardor cósmico, embriagado de ambrósia imortal. Quando mantém o fogo ritual com as suas achas, representa, na realidade, a reconstruir os mundos. Dispõe da energia sem limite do Brama. É aqui que intervém uma alusão sexual: ela revela uma vez mais a dimensão nova que mede o exercício total da sexualidade.
«Mugindo como a trovoada, touro da pelagem branca,
o discípulo expõe o seu membro viril sobre a terra;
Ele espalha o seu sémen sobre o solo, sobre a terra,
vivificando por este meio os quatro Orientes.
Ao fazer isto, é à Agni, à Surya, à Chandramas, à Matarishvan que o discípulo fornece uma acha, assim como às águas cujos fogos se dispersam nas nuvens; o homem para elas é matéria de oblação. As águas são a chuva fecundante.».
É difícil imaginar quais podiam ser, na realidade, as práticas subjacentes a este texto. Uma passagem do Mahabharata é, no entanto, muito útil para nos esclarecer. Trata-se de um hino a Xiva, em que o próprio grande Deus é nomeado «bramacarin». Este termo seria perfeitamente inadequado se se tratasse apenas do estado de aluno, de aprendiz brâmane. Mas o que acabamos de dizer do estado do «bramacarin», identificado com Prajapati, o homem cósmico dispondo do Brama, permite-nos compreender esta denominação deste Xiva, «cujo sémen foi oferecido em oblação na boca de Agni, cujo sémen foi transformado em montanha de ouro. Quem, portanto, poderia ser chamado «bramacarin nu com o sémen erguido”?» Para compreender esta última expressão tem de se saber que o sexo em erecção dos ascetas não representa, na tradição indiana, uma tentação ou um preliminar de acto sexual completo. É, pelo contrário, o sinal da castidade não concebida como repressão, mas como domínio, exaltação e sublimação do desejo. Um escorregar retórico identifica o sexo erguido com o sémen concebido como uma energia transmutável. O «sémen erguido» faz aqui parte de todo um conjunto de tipo alquímico em que o fogo aparece como o meio da transmutação. Quanto ao ouro, ele é o símbolo do estado de cumprimento, termo desta transformação radiante.
Para compreender a oblação do sémen no fogo temos de tentar desenredar a meada complicada do carácter erótico de Agni (o fogo). Na tradição antiga, a fricção de dois bocados de madeira, evocando o ritmo do aquecimento sexual, é um dos meios de produzir o fogo. Agni é o ardor sob todas as suas formas. É também o ardor espiritual, esse misterioso tapas que os yogis elaboram a partir da sua energia fundamental. A este título, Agni mantém boas relações com Xiva, o primeiro dos ascetas.
Agni é também o ardor propriamente sexual. Torna-se mesmo o desejo personificado, ao ponto de a sua mitologia interferir frequentemente com a de Kâma, o deus do amor. O Rig Veda já o mostra procurando apaixonadamente as comparsas femininas. Toma por vezes a forma de um brâmane errante, literalmente alienado pelo seu desejo. Do seu sémen, amplamente espalhado pelo mundo, nascerão as criaturas mais imprevistas.
Agni é também o fogo destruidor. A este título, é a morte. Mas a cremação é uma passagem, e Agni faz então figura de barqueiro para uma outra existência. Este aspecto sombrio do fogo erotiza-se paradoxalmente no mito de Sati, a esposa fiel que queima o seu corpo por amor. A fogueira torna-se então tálamo nupcial e holocausto voluntário, uma última noite de núpcias.
Certos mitos mostram-nos Agni absorvendo o sémen de Xiva. Se bem que não seja o único entre os deuses a proceder a tal operação, é, no seu caso, muito coerente com a mitologia védica do fogo, lugar de oblação. De facto, este episódio do xivaísmo parte também de uma tradição que procura afastar o elemento feminino (na ocorrência Parvati, a esposa do Deus) para assegurar ao filho de Xiva uma origem totalmente sobrenatural. O que a lei moral dos Indianos proibia aos humanos surgia então, no plano divino, como um mistério que corresponde, à sua maneira, e de uma maneira invertida, à partenogénese dos heróis. Estas poucas indicações permitem compreender melhor a parte importante que o erotismo indiano concede à mitologia do fogo. Para além do pitoresco das lendas, vê-se precisar um certo número de questões fundamentais que a metafísica, a moral e a psicologia tentarão ulteriormente tratar.
A mitologia xivaísta coloca, todavia, aos seus fiéis como aos etnólogos um problema cuja solução não é evidente. Xiva aparece ao mesmo tempo como o maior asceta e como o amoroso mais febril. De um lado, o yogi eterno mostra-se em perfeito estado de kaivalya (solidão mística). Possui a aparência externa de um eremita assustador, repelente, concentrado apenas na sua actividade interior. Por outro lado, vemo-lo face à sua esposa Parvati, sedutor, brilhante, poderoso. A imobilidade selvagem transforma-se em majestade serena. O asceta renunciou ao exercício da sua paixão: se se mostra «itifálico», sabemos que está aí o sinal da sua força masculina, toda concentrada na experiência interior e na possessão dos poderes. O esposo de Parvati, em compensação, joga a fundo o jogo do apaixonado. Também conhece aventuras extraconjugais e os seus orgasmos são tão poderosos que a sua fecundidade transborda amplamente sobre o universo inteiro.
Para resolver esta aparente contradição, tem de se referir à tradição lógica indiana, que não encara a relação das realidades opostas segundo as lógicas de Descartes ou mesmo de Aristóteles.
Notemos de imediato que a mitologia tardia de Xiva, a que cobre o período medieval da nossa era, vem na continuação de Agni, tal como a época védica a imaginara. Realçámos já os aspectos divergentes, mesmo contraditórios, desta efabulação sagrada. O fogo divinizado jogava com o amor e a morte, invertendo os valores, identificando os contrários com uma grande liberdade, A época da grande literatura «purânica», cobrindo, grosso modo, a nossa alta Idade Média, viu florescer eflorescências mitológicas de uma rara complexidade. O xivaísmo tendia, com efeito, em transferir para um único tema divino todo o adquirido de uma tradição multiforme de tendências diversas, muitas vezes contraditórias. Xiva, herdeiro da grande estirpe ascética que parte da noite dos tempos, recolhia já tarde os dados espirituais elaborados nas correntes devocionais mais diversas. Xiva herda, assim, de Brama, de Agni, de Varuna, de Kâma: as suas relações com Vixnu tendem a subordinar este antigo deus, que devia, por outro lado, conhecer uma fortuna independente. Quanto à herança do culto das deusas, os múltiplos nomes da esposa de Xiva estão realmente lá para testemunhar quanto à sua riqueza e sua diversidade. Face a um «material» tão heterogéneo, mais vale falar de compilação que de síntese, e, de facto, o lendário xivaíta nunca tentará resolver o conjunto deste ganho numa estrutura coerente.
De facto, este material mítico, colectado no curso dos séculos e reunido no leito de uma grande corrente devocional, não faz mais do que traduzir o conjunto dos factores psicológicos que dele são a origem. Em matéria de sexualidade, poderíamos lançar de mistura um certo número de questões colocadas à consciência humana por esta energia assustadoramente poderosa: – o homem possui uma sexualidade permanente;
– o desejo humano ultrapassa as necessidades de procriação;
– o aumento do desejo pode ser desviado e sublimado;
– o homem faz no orgasmo a experiência de uma duração intemporal;
– o medo da castração ou da violação cria, inconscientemente, situações conflituais;
– o instinto de morte está presente no coração do prazer;
– o uso da energia sexual dá uma certa experiência da energia cósmica;
– o mito do Andrógino lembra a memória inconsciente da bissexualidade inicial e transitória do ser humano; culmina no mito da fusão do macho e da fêmea.
Esta lista, não exaustiva, das «questões» colocadas pela sexualização consciente do homem encontra na mitologia de Xiva perfeitas ilustrações. Vê-se imediatamente a incoerência de um tal montão de realidades, de que algumas parecem não poder coexistir simultaneamente. Está aí, de facto, a experiência de todo o ser humano. A consciência sexual activa nele o jogo das contradições, coloca questões insolúveis, cria situações intoleráveis, encarniça-se em provocar posições em falso na base de um equilíbrio dificilmente adquirido.
É normal que Xiva crie terror à sua volta. Os sábios estão enlouquecidos pela força da energia acumulada pela sua ascese. A sua esposa, se bem que praticando ela própria o ioga teme trazer no seu seio um fruto deste deus em sobrevoltagem. Xiva, esse, mantém-se calmo, porque é o senhor da energia cósmica. É o único a sabê-lo, mas a calma do seu rosto apresenta aos seus devotos a certeza desta segurança. A ascese junta-se ao exercício do amor, porque uma e outra são o domínio da energia cósmica manifestada no homem sob a forma do seu ardor sexual. A ascese reúne a energia fundamental para alongar o campo da consciência. Os poderes que daqui decorrem têm por finalidade menos a dominação que a destruição das forças de dispersão: Xiva destruirá Kâma, o deus do amor volúvel, com um disparo de laser saído do seu terceiro olho. Os destemperos de Xiva amoroso não são infidelidades à sua esposa, mas a repartição judiciosa da sua energia segundo as necessidades da criação ou a manutenção do dharma no mundo. Em tudo Xiva aparece como o mestre. O linga, essa pedra cilíndrica que assinala a sua presença, não é mais do que um sexo erguido; é, mais fundamentalmente, o bloco de energia pura. Deve ser considerado com a emoção, o interesse e a prudência com que se lida com um bloco de uranio enriquecido. Se a tradição ulterior a sexualizou é porque o sexo em estado de erecção era, aos olhos de todos, uma manifestação carnal deste mistério cósmico. Um selo de dez rúpias mostra o reactor atómico indiano de Trombay. Deram-lhe a forma do «linga». Alguns cientistas vêem nas suas realizações técnicas uma manifestação moderna do culto de Xiva. O culto da energia passava outrora, na Índia, pelo sexo e a arte do amor. Passará agora obrigatoriamente pela veneração das centrais nucleares?
É a projecção sobre um plano de mitologia divina das realidades sexuais vividas pelos humanos. Para apreender o mecanismo desta transposição temos de nos lembrar, em primeiro lugar, que a tradição indiana situa a consciência dos mistérios da vida em três planos:
1. Ao nível do vivido humano reina o dharma, a lei, a necessidade ética. Pelas suas injunções, as suas permissões e suas proibições, o dharma regula, imperativamente, os problemas da actividade humana, elimina pela força os elementos de contradição. Estabelece uma ordem que, por ser artificial, não deixa de ser uma necessidade da vida social.
2. Ao nível dos mitos divinos reina uma nova ordem. Aqui, a desordem é tolerada, não a desordem anárquica mas a coexistência de todas as manifestações de energia. Os deuses vivem numa ordem supramoral que os homens não podem seguir. É, finalmente, neste plano que se manifestam os problemas escondidos do vivido humano. As questões «proibidas» são colocadas num plano mítico, resolvidas de uma maneira não «dharmica», mas «cósmica». Em imaginação em êxtase, em contemplação ou em estado de devoção, o indiano vive também a este nível «supradharmico» e pode ouvir, no interior de si mesmo, respostas que a lei do vivido humano não lhe permitirá solicitar.
3. A um nível superior reina o mundo do param. É o Além inacessível pela imaginação: a ordem de Brama para uns ou do deus escondido para os outros. Só ali pode ter acesso pela via negativa do conhecimento místico.
Regressaremos, portanto, ao nível dois, o dos mitos divinos, para continuar a análise de um aspecto muito particular da sexualidade humana projectada ao nível dos deuses míticos. O facto de ser sexuado coloca ao homem uma questão fundamental: a da sua unidade profunda. A memória visceral de uma ambissexualidade embrionária faz nascer no seu psiquismo inquietações que ele compensa mais ou menos bem. O que nós chamamos «transexualidade» dos deuses míticos é a projecção, a um nível de consciência superior dos impulsos, incertezas e angústias que a lei humana não permite evocar, menos ainda resolver.
Para compreender a riqueza da tradição indiana, tomemos um ponto. de partida no Ocidente. Sabe-se que no Banquete Platão evoca uma raça original dotada de poderes muito especiais. Os individuos que a compunham integravam na sua pessoa os principios masculino e feminino. Sem dúvida retiravam desta unidade uma força e um poder que faziam tremer os deuses. Para afastar este perigo, os deuses cortaram esta humanidade em dois sexos. Sempre desde então, Eros leva os homens a procurar a unidade perdida. O amor de um dos amantes transcende, portanto, sempre, o seu companheiro para visar a unidade primordial perdida. O texto da Brihad-Aranyaka-Upanixade, que citámos, descrevia já a divisão do Purusha inicial em homem e mulher. Precisava, contudo, que, para lá da satisfação dos desejos, a procura do âtman, princípio da unidade absoluta, era a única verdadeiramente desejável.
No plano da mitologia divina, a unidade transexual não é inicial, mas o objecto de uma procura final. O mito do andrógino refere como o seu nome indica, um estado primordial do homem. É um mito da criação do homem; desenrola-se no plano «inferior» da realização do projecto divino na matéria. A androginia dos deuses é de uma outra ordem: é uma projecção sobre o plano transcendente da unidade que o homem procura pela via da mística. O regresso à unidade pressupõe que se ultrapasse a dualidade dos sexos, mas sem nada perder da energia que se manifesta ao nível da bipolaridade amorosa, tal como a vivem os humanos. Os deuses aparecerão, por vezes, não como andróginos, mas como realidades superiores integrando as perfeições da actividade macho e fêmea. As soluções serão diversas e a imaginação criadora da mística indiana não foi apanhada em falta.
Tentemos agora dar uma ideia da transposição da sexualidade para o plano divino. A mitologia xivaíta fornece-nos todos os elementos desejáveis. Aqui, como com muita frequência na Índia, o mito é uma maneira de pensar que tanto nos informa sobre a realidade humana como sobre os costumes divinos. Vamos ver, aliás, quanto se revelava difícil a transferência desta actividade singularmente humana num mundo divino que tem normalmente de transcender os inconvenientes da dualidade ou da complementaridade do casal, bem como todas as fraquezas ligadas ao mundo das paixões. As extravagancias da mitologia xivaíta, surpreendentes ao primeiro contacto, depressa revelam uma preocupação de rigor.
«Daksha dividiu o seu corpo em dois e obteve uma muito bela mulher, da qual teve numerosas filhas. Abandonou então a sua parte fêmea e deu as suas filhas aos deuses como esposas.». Xiva recebe por esposa Sati. Esta entra em fúria quando Daksha não convida o seu marido para o seu sacrifício. Atira-se então para o fogo. Louco de dor, Xiva começa então uma dança que perturba a terra e o céu. Os deuses resolvem agora esquartejar o cadáver de Sati, e, quando separam a vulva da esposa, Xiva, identificando-se como o linga, vai unir-se a ela. Sati renasce então sob a forma de Parvati, filha da montanha Himalaia. Mas Xiva está perdido no seu ascetismo. Parvati envia-lhe, portanto, Kâma, o deus do Amor-Desejo, para o desviar da sua concentração. Xiva reduz Kâma a cinzas com um olhar do seu terceiro olho. Parvati põe-se então a praticar ascese para ganhar o coração de Xiva. Depois de diferentes provas, as bodas são decididas.
No dia das bodas, Brama tem o papel de oficiante da cerimónia. Impressionado pela beleza de Parvati, não retém o seu sémen, que corre por terra. Escapa por pouco à maldição de Xiva. O seu sémen não ficará perdido: tomará lugar nas nuvens, sinal de fecundidade.
Assinalemos o curioso episódio do demónio Adi, que toma a forma de Parvati, mas arma a sua vagina com dentes. Será morto pelo próprio linga de Xiva quando este descobrir a substituição.
O demónio Andhaka, em desforra, toma a aparência de Xiva para seduzir Parvati. O demónio será empalado no tridente de Xiva e queimado pelo seu terceiro olho. Purificado e ressuscitado, será conhecido como filho do casal divino.
Xiva prossegue nas suas austeridades na floresta dos pinheiros. Está nu, «itifálico»; dança, mendigando com um crânio na mão. As esposas dos sábios que vivem na floresta ficam apaixonadas por ele. Os sábios amaldiçoam Xiva e castram-no. Brama e Vixnu encontram o linga de Xiva, tentam medi-lo, porém este cresce de maneira desmedida. Os dois deuses declaram-se ultrapassados pelo poder deste sexo divino, imagem da potência infinita de Xiva, e decidem adorá-lo.
Terminamos esta panorâmica da mitologia amorosa de Xiva contemplando uma forma do deus que a iconografia muitas vezes nos apresenta. Ardhanarishvaramurti mostra-nos um ser híbrido, meio homem, meio mulher. É a forma do «grande deus» depois da sua união corporal com sua esposa, que, aqui, tem o nome de Umâ.
Umâ considera cada vez com menos paciência a devoção que o rishi Bhringi reserva apenas para Xiva. O deus, interrogado sobre a identidade deste devoto, responde: «Minha querida, é um fiel que crê firmemente que eu sou tudo e que tudo depende de mim.»
Umâ não responde, mas passa ao contra-ataque. Na realidade, esta resposta tem por finalidade atingir Xiva. A esposa, irritada, pretende, com efeito, que o deus não poderia ser venerado sem o seu duplo feminino, a sua skakti. Na verdade, é o pobre Bhringi que tem de aguentar a cólera da esposa irritada: Umâ retira-lhe todos os elementos da sua vitalidade, toda a sua energia – o sangue e a carne. Bhringi já não é mais do que um amontoado de ossos e de nervos; desmorona-se, e Xiva oferece-lhe uma prótese miraculosa, uma terceira perna para sustentar o seu corpo vacilante.
Umâ está furiosa: ela quer que a sua unidade total com Xiva seja reconhecida imediatamente. Levanta-se do seu trono e solicita de seu esposo autorização para ir praticar o tapas no monte Meru. Trata-se de um ascetismo de pressão semelhante à greve da fome. Eficaz para atrair a atenção daquele para o qual esta operação era dirigida, Xiva, de facto, fica muito impressionado e vai procurar Umâ. Pergunta-lhe o motivo desta manifestação. «Senhor», responde a asceta astuciosa, «desejo estar sempre unida a vós de modo que não tenhamos os dois senão um mesmo corpo!» Imediatamente Xiva tomou Umâ e a alojou na parte esquerda do seu corpo. Sob esta forma, Xiva é chamado «Ardhanarishvaramurti».
Tentemos agora evidenciar os elementos essenciais veiculados por esta mitologia: ali descobriremos a base de uma concepção muito particular da sexualidade. Atrás do fabuloso divino encontram-se realidades mais ou menos conscientemente vividas pelos homens.
O episódio de Sati lembra-nos o holocausto das viúvas e a crença numa união superior dos esposos reunidos pelo fogo.
Kâma queimado por Xiva representa o amor «carnal», o que pode desapossar o asceta dos seus poderes adquiridos pela prática do seu tapas.
Brama perdendo o seu sémen é a imagem do ser que não sabe controlar a sua energia.
As histórias dos dois demónios introduzem uma o tema da «vagina dentata», o aspecto devorante da mulher, e o outro o de um ser provisoriamente mau mas purificado e ressuscitado.
A lenda da floresta dos pinheiros põe em relevo a infinidade da potência criadora do deus, que nem os sábios nem os outros deuses podem controlar.
Quanto à união com Umâ, ela representa não uma versão do andrógino, mas, num plano superior, a coincidência perfeita do que a sexualidade tende a opor. Não se trata, portanto, de uma androginia de partida, mas antes de um ponto de chegada ou de uma verificação da unidade perfeita do macho e da fêmea que apenas os deuses podem realizar.
Podemos, assim, falar realmente de transexualidade divina, se por tal se entender não um vivido humano mas uma projecção das experiências sexuais do homem, limitado, temporal e espacialmente, sobre um plano cósmico onde a energia ultrapassa amplamente o simples dominio da reprodução ou do desejo e se manifesta em toda a sua amplitude.
Gostariamos, em contraponto, de dar uma ideia da mitologia de Vixnu, tal como nos é proposta pelo ponto de vista xivaíta. Se Xiva é, efectivamente, o grande yogi e o macho por excelência, Vixnu parece desempenhar um papel bastante ambíguo. O grande deus védico, o que mede o infinito, desempenha um papel na mitologia xivaíta, o que a arte dramática chama com gosto «utilidades» e mesmo de «composições». Vêmo-lo aparecer muitas vezes sob um aspecto feminino.
Certamente, o «linga Purâna» associa-o à criação do Mundo: «Xiva é a semente de toda a coisa. No decurso da criação primeira, o sémen emitido pelo seu linga foi depositado no seio de Vixnu. No correr dos tempos, este sémen de ouro tornou-se um ovo que se pôs a flutuar sobre as águas cósmicas no decurso de mil anos celestes.» Também vemos Vixnu assumir a forma de sedutora por excelência, a ninfa celeste Mohini. É ainda no quadro da floresta dos pinheiros que se desenrola este episódio. «Vixnu tomou a forma da “apsara” Mohini, a fim de enganar os demónios para lhes retomar o “soma”. No termo desta façanha, Xiva e Parvati apresentaram-se e Xiva emitiu o desejo de ver Vixnu reencontrar a forma sedutora que assumira para afastar os demónios. Vixnu, portanto, tornou a ser Mohini. Xiva imediatamente se pôs a correr atrás dela, abandonando Parvati, abatida pelo despeito. Abraçando Mohini à força, o seu sémen caiu no solo. Mohini desapareceu e Xiva voltou para Parvati.»
Este episódio, um pouco delirante, mostra bem que a personalidade de Vixnu assume mal, no plano mitológico, um sexo humano. Fez-se justamente notar que as companheiras femininas de Vixnu, principalmente Lakshmi, não desempenhavam, para com o deus, o papel de shakti, que é o de esposa de Xiva. A shakti, efectivamente, é o duplo e o complemento energético de um deus. Ora, no caso de Vixnu, é Brama que desempenha este papel: é ele que aparecerá sobre o lótus nascido no seu umbigo, no limiar de uma criação nova.
Alguns viram mesmo este aspecto feminino de Vixnu na devoção ao shalagrama, essa pedra negra, amonite fóssil do Nepal, que se apresenta furada. O shalagrama seria o sexo feminino equivalente do linga de pedra que os adoradores de Xiva veneram. Isto não parece muito convincente: no lendário do shalagrama, Vixnu desempenha mais o papel de macho. No entanto, a ambiguidade permanece se nos lembrarmos da oração formulada pela Brihad-Aranyaka-Upanixade: «Que Vixnu prepare a matriz!»
Podemos, pois, concluir que o Vixnu de um certo periodo mitológico possui uma espécie de instabilidade quanto ao sexo que assume. Na realidade, o mesmo se poderia dizer de todos os aspectos das suas formas imagináveis. O Vixnu do Veda, antigo como o dos grandes devotos do período medieval da bhakti (devoção permanente do coração), está para além de toda a imaginação. A própria «labilidade» das suas formas significa, de uma maneira negativa, a transcendência da sua natureza suprema. Chegará um dia o tempo de uma devoção particular tendente a mostrar a coincidência de Xiva e de Vixnu. Chamar-se-á «Hari-Hara», a imagem de um deus sincrético, e as esculturas oferecerão ao olhar dos sectários desta invenção mística um ser híbrido, meio Xiva, meio Vixnu, estabelecendo-se a diferença mais pelas armas e o trajo do que pela morfologia dos corpos. Se nos lembrarmos da existência de imagens representando também Xiva unido a Umâ, sob a forma de Ardhanarishvaramurti, temos de concluir que Xiva tem tendência para, de boa vontade, se confundir com seres diferentes dele. De facto, o «grande deus» possui tais títulos de nobreza que mais vale dizer que nele absorve todas as possibilidades divinas e humanas.
Do ponto de vista da sexualidade, este lendário, que parece um pouco aberrante, é, na realidade, dominado por um pensamento profundo. Xiva basta-se a si mesmo, os seus amores são um jogo («lîlâ») perpétuo da sua energia superabundante. Não vamos situar nele o Eros dos Gregos, se por tal entendermos o desejo profundo de reencontrar a unidade para além da divisão sexual: o grande deus está para lá de toda a ordem criada. Ele assume antes o pathos dos deuses e dos homens, o jogo indefinido das ausências e das presenças, a loucura provisória das pulsões e das paixões, o prazer ácido de suscitar o ciúme, a agradável humilhação de se fazer perdoar, a festa do sémen espalhado sem medida. Esta dança, este jogo, tem por finalidade atrair a atenção do fiel e obter o dom do seu coração, mas, para além deste alegre delírio que os homens bem conhecem, o dançarino detém-se, o jogador imobiliza-se e o yogi eterno, figura da unidade jamais perdida, projecta de perfil o rosto da sua eterna sabedoria. A energia esbanjada revela a superabundância do princípio divino. A actividade sexual, aparentemente desordenada, manifesta, além das imagens, uma reserva de amor inesgotável. Os «desportos» de Xiva, como dizem os Ingleses, não são loucura; não têm por origem o desejo, nem a obsessão, mas a plenitude, na qual o devoto reconhece a imensidade do seu deus.
Muitas tradições indianas vêm de um passado sem história. Muitas realidades espirituais enraízam-se em cultos locais de origem indefinida. Os textos do tantrismo não são anteriores ao século IV da nossa era, mas a arte tântrica oferece-nos elementos que permitem pressupor uma origem mais antiga. O tantrismo é um conjunto de opções espirituais que de boa vontade se acomodaram a estruturas religiosas tão diferentes como o hinduísmo, o budismo ou o jainismo. Difundiu-se não só na Índia, mas no Nepal, no Tibete, na China, no Japão, bem como no Sudoeste Asiático. Esta fluidez temporal e espacial merece um interesse particular. Para penetrar mundos tão diferentes, era realmente necessário que estas opções respondessem a exigências muito profundas do coração humano. Os tantra não se impuseram oficialmente como uma grande religião. O seu sucesso foi tanto mais certo quanto operou de uma maneira subterrânea, profunda, contínua. Não poderia ser chamada sectária (no sentido estreito do termo), mas antes «mistérica». O segredo do seu ensinamento, sem dúvida que dependia menos de uma necessidade de se proteger que de uma escolha judiciosa dos adeptos aceites para correr uma aventura dificil. A sua influência pôde, todavia, difundir-se amplamente, porque é da essência do tantra suscitar uma arte oferecida, em grande parte, a todos. Os pequenos Nepaleses contemplam com olhos calmos os casais enlaçados, esculpidos nas traves dos templos de Bhadgaon. Os turistas ocidentais, congestionados, apontam para estas figuras as suas câmaras, gozando um delicioso sentimento de culpabilidade. Assim se manifesta uma doutrina que se enraíza numa experiênciamística profunda, mas que se afirma a quem quer que chegue com uma inacreditável liberalidade. A iniciação fundamental de um pequeno número soube desenvolver uma cultura onde cada um, segundo as suas disposições, podia retirar uma revelação, um encorajamento ou uma beberagem de serenidade.
Uma das opções centrais do tantrismo é clara: o homem descobre que a sua energia sexual não é simplesmente uma força de reprodução, ela transborda dos quadros da simples conservação da espécie para fornecer ao individuo a possibilidade de atingir estados de consciência mais elevados.
Esta verificação, de facto, sai amplamente fora do quadro do hinduísmo, mas, mais uma vez, a corrente religiosa oriunda do Veda soube absorver, enquadrar, analisar e classificar todos os elementos e os momentos desta transmutação; todavia, seria errado identificar o tantrismo com a racionalização que dele nos dão os tratados hindus. Seria também tolo negligenciá-los, sabendo que não se deve confundir os diques artificiais de um curso de água com o próprio rio. Como pôde impor-se a intuição tantrica no quadro do hinduísmo? Seguimos o fio que, desde o Veda antigo até ao lendário xivaíta, traçou o caminho do pensamento hindu neste dominio. Este itinerário, longe de ser uma linha recta, é uma linha quebrada pelo jogo das atracções, das repulsões e das tentativas de acomodação. De facto, três atitudes se afirmavam possiveis perante o mistério da potência sexual do homem.
Uma certa tradição bramânica via na actividade sexual um desperdicio de energia. Nascendo o desejo espontaneamente, chega-se a distinguir o despertar da potência da realização do acto. Essencialmente considerado de um ponto de vista masculino, isso equivalia a dizer que era preciso a todo o custo evitar a ejaculação para conservar em si a força viril, a fim de a transmutar em poderes espirituais. Yogis e homens casados estavam de acordo sobre este ponto e as técnicas elaboradas à base de respiração, de mudra, de movimentos da língua permitiam chegar aos seus fins. O yogi cujo sexo estava em erecção procurava não ultrapassar este estádio; quanto ao homem casado, sabia praticar um coito interrompido, que, no melhor dos casos, permitia satisfazer a esposa sem perder o precioso sémen, licor de vida que convinha economizar. De facto, esta atitude parecia estar bastante afastada do Veda primitivo, que via no dom do sémen o dom do «soma» no fogo sacrificial. Esta avareza sexual não deixava de ter perigo para o homem casado, e menos ainda sem perigo para a mulher rebaixada para a categoria de «comedora de energia». Os textos da mitologia xivaíta conservam ainda o sinal desta atitude e o deus Kâma paga a conta quando se apresenta diante de Xiva para o tentar pelos artificios do amor sem moderação.
Mas, face a esta linha de conduta, existiam também na tradição indiana correntes eróticas de uma outra natureza. Certos cultos antigos continuavam sempre a celebrar festas da fecundidade, nas quais a prodigalidade espermática era o sinal e a garantia da fecundidade da terra. O culto de Krishna, por exemplo, era originalmente o de um deus pastor. Entrou no hinduísmo colocando-se no tronco da devoção a Vixnu. Krishna aparece como o amoroso inesgotável, e, se o seu amor se fixa em Radha, a sua preferida, o mito garante-nos que ele era capaz de satisfazer ao mesmo tempo uma multidão de gopi (as vaqueiras que o rodeavam). A festa de Holi possui um ritual bem significativo: aspergem-se mutuamente com seringas que projectam água colorida.
Este culto inicial da fecundidade ia sofrer, no entanto, na tradição hindu, e muito especialmente sob a influência de correntes devocionais vixnuítas, uma espécie de sublimação espiritual. Krishna representa o deus capaz de fazer amor espiritualmente com a multidão dos seus devotos.
Na origem da concepção tântrica da sexualidade há, talvez, a intuição muito clara da superabundância energética do vivo, superando as necessidades estritas da reprodução da espécie. O tantrismo opta resolutamente por uma economia da superabundância, mesmo que a forma hindu se encontre muitas vezes contrabalançada pela tradição bramânica dependente de uma economia de «avareza». Reencontra, ao fazê-lo, as primeiras intuições védicas, porém alarga-as consideravelmente. O homem, como organismo, é capaz de um conjunto de funções que não são mais do que determinações de um tecido energético original. Como encruzilhada de correntes cósmicas, é um conjunto de pontos «quentes» que se podem simbolizar, não por palavras ou ideias mas por símbolos de uma outra natureza: objectos-forças. O sexo é o ponto quente por excelência, porque é a ligação fundamental com o reservatório inesgotável de energia que é o Cosmos. Para que esta «ramificação» seja possível é preciso que intervenha uma força que permita transformar o dado imediato da sexualidade em adquirido de consciência de natureza superior. É aqui que intervém uma mitologia nova, a do par primordial (Mahakala ou Xiva do lado macho, a «Deusa» do lado fêmea). O princípio masculino permanece escondido e, segundo a teoria do «shaktismo», o princípio feminino, duplo energético visivel do deus macho, age e ocupa-se dos homens para lhes ensinar a via da saúde e da salvação.
É portanto, a partir do exercicio da sexualidade que o tantrika (adepto do tantrismo indiano) vai começar uma viagem espiritual de uma natureza particular.
Notemos de imediato que o tantrika possui para esta viagem um mestre e aliados. O guru vai já adiantado no caminho, mas revela ao seu discípulo auxiliares poderosos para o apoiarem nesta procura. Observa-se de imediato uma certa desconfiança da linguagem. A tradição clássica indiana caiu muitas vezes na armadilha das palavras «coisificadas». Concebeu um gosto estéril pelas composições abstractas, pelas classificações inúteis e passos dialécticos que acabavam, muitas vezes, em puro jogo do espirito. Alimentando-se amplamente num domínio arquetipal inesgotável, o tantrismo para si forjou um conjunto de sinais espiritualmente activos. Dá-se-lhes, por vezes, o rosto distantemente humano de deidades são os devata -, mas uma atenção semântica penetrante permite ao tantrika discernir objectos-forças que revelam numa forma particular o poder universal da actividade cósmica. Estes universais concretos têm um poder particular, o de captar o espírito. Divindades, objectos isolados, vastas composições das «mandala», diagramas abstratos ou yantra oferecem um mapa do real de natureza muito particular. Mas, consciente que o grafismo pode cair na armadilha de uma representação descontínua, o som vem em socorro do espírito do tantrika para lhe revelar o aspecto continuo do real. Os «mantra», a música ritual, a música ocasional ou erótica asseguram esta função. O ritual das cerimónias, a pûjâ dirigida aos objectos postos em situação de ídolos ou às partes do corpo vêm completar o conjunto destes aliados poderosos que apoiam o adepto na sua progressão. Nenhum sentido escapa a esta petição. Certas drogas poderão ser utilizadas.
Mas, vamos vê-lo, este caminho nada tem de uma balada selvagem em território desconhecido. A «Deusa» balizou o caminho e não seria possivel abster-se de passar por certos pontos de referência muito precisos.
Os objectos-forças que a actividade criadora do tantrismo suscita possuem uma acção especifica sobre o espirito do adepto. Esta acção passa por fases sucessivas que parecem ser as de uma dialéctica ternária; mas, em vez de envolver apenas as formas lógicas e o poder abstractivo do espirito, elas assumem a integralidade das forças do vivo. Não teremos uma repartição do género «tese-antítese-síntese», mas bem mais um triplo «fascinação-repulsão-visão». Compreende-se agora a importancia do amor sexual e da morte para aceder a esta visão serena. A poderosa atracção do sexo será quebrada pela contemplação da decomposição e da morte, e o carnal assim queimado permitirá reencontrar um puro contacto com a energia cósmica antes mesmo da sua divisão em amor e em morte.
O tantrismo soube desmontar os mecanismos da fascinação da sexualidade com uma precisão inigualável. Sabe usar vastas composições centradas em torno de um casal em união carnal. O mundo inteiro parece girar em torno deste acto e nele encontrar o fecho da abóboda da sua estrutura. A fascinação é, a este nível, de natureza mais intelectual e, se a realidade sexual está presente, ela mantém-se situada num espaço de que é como que a medida fundamental. O homem e a mulher em estado de união são a célula inicial de um vasto organismo. A consciência amorosa do casal surge então como a programação fundamental do mundo inteiro concebido como corpo vivo. Fica-se cativado pelo fenómeno desta extensão como quando se contempla a árvore na semente que se tem na mão. Por vezes também o tantrismo salienta um elemento destas grandes composições. Isola-o, coloca-o em situação insólita. O elemento torna-se então um objecto-força particular, de poder misterioso. Torna-se uma imagem surrealista capaz de comover as forças radicais do psiquismo. O órgão masculino ou feminino, o ovo, a serpente, a concha, a lança ou o osso humano parecem irradiar uma luz que transforma o olho, o olhar e todo o homem.
As representações isoladas do casal em estado de união carnal têm também o seu poder de atracção próprio. O seu impudor apresenta o amor no estado nativo, puro, inocente, paradisíaco. A este título, exerce no espírito não só a atracção de toda a representação sexual mas o fascínio da beleza. Certos aspectos destas imagens revelam, no entanto, que este amor carnal é também de uma outra natureza. As posições acrobáticas não são simplesmente meios de excitação, como o sonham com demasiada frequência os Ocidentais: têm um valor de representação cósmica. Todas as possibilidades da flexibilidade corporal são utilizadas para representar o jogo sempre diverso, sempre recomeçado das forças criadoras do Universo. A resultante da união amorosa procede das combinações múltiplas do corpo como a unidade do microcosmo e do macrocosmo pode ser atingida através dos acontecimentos psíquicos ou das deflagrações cósmicas mais diferentes.
Certas pinturas, certas esculturas (os cobres do Tibete ou do Nepal, por exemplo), apresentam-nos corpos em união amorosa. Não estão nus, mas ornamentados com uma fina rede de jóias. Não há ali garridice ou simples gosto de decoração. Aqueles colares, aquelas pulseiras, aqueles peitorais dão uma imagem do corpo subtil que duplica o corpo grosseiro. Este requinte não é portanto, elegancia, mas percepção do espiritual para além do sensível. Mas aqui a jóia casa com o corpo como o homem casa com a mulher, e a união dos sexos cumpre-se em harmonia com a união de todas as dimensões do homem. Assim, o que se poderia tornar apenas pelo picante de uma alimentação terrestre é, na realidade, o sinal de uma outra dimensão envolvida no jogo dos amores sensíveis.
O segundo tempo desta dialéctica surreal utiliza mecanismos de repulsão que são, certamente, os mais difíceis de compreender para os Ocidentais. Tem realmente de se confessar que o horrível é um conceito bastante elástico. Para o brâmane ortodoxo, o vinho e a carne de porco são contados entre os objectos de repulsão. As transgressões de um adepto de tantrismo neste domínio parecem-nos verdadeiramente mínimas. Em contrapartida, o amor nos cemitérios, ou mais exactamente nos recintos de cremação, onde reinam os ratos e os chacais, no meio de despojos humanos, não nos parece uma operação cheia de encanto. Os aspectos terrificantes, monstruosos, sanguinários, da deusa Kali também não nos parecem capazes de inspirar uma devoção à qual o Ocidental ligue mais um sabor açucarado do que salgado ou apimentado! A decomposição, a morte, a necrofilia, o sentido hipertrofiado do sinistro unem-se para formar uma agressão de um raro vigor.
Notemos que se o primeiro efeito desta proposta repugnante é a fuga, o horror possui também a sua força de fascínio e de atracção. Esta «inversão de sinal» é um acto psicológico que garante o lucro da literatura de horror e do cinema de terror. Com gosto imagino um francês médio horrorizado pelas imagens tantricas da série «repugnante», indo, em segredo, ver filmes como «A Noite dos Mortos-Vivos» ou algum Drácula. A tradição mística cristã não hesitava, aliás, em louvar, em certas épocas, esta inversão do sinal. Havia muita complacência pelo mórbido em certas danças macabras, «postremarias» de Valdés Leal na Caridad de Sevilha! Dizem-nos que certos santos conheciam uma espécie de êxtase ao beijarem leprosos ou lambendo certas úlceras purulentas. A tradição tântrica confessa publicamente o que o Ocidente procura esconder. Há nesta atracção pelo repugnante uma força estranha que envolve a pulsão sexual. Aceitando ver este facto de frente, o tantrismo entende operar uma maneira de discernimento, de catarse.
É para ele o segundo tempo desta dialéctica existencial do amor perdido na morte e pronto a reencontrar-se num mundo novo. A força deste momento terrível permite arrancar uma primeira experiência do amor humano a um espaço e a um tempo determinados pelo uso vulgar do psiquismo humano. Não existe, com efeito, amor humano que não se sinta ameaçado desde que atinja a sua plenitude. O homem e a mulher têm o sentimento de falhar justamente no instante em que se unem. Depois vem a verificação da não identidade psicológica, do medo da «possessividade» do outro, o terror do envelhecimento, o horror da morte do outro tanto quanto o terror da própria. O tantrika apresenta-se de uma só vez às portas da morte não para ali destruir a sua potência amorosa mas para a transfigurar. A primeira virtude deste adepto será, portanto, a coragem. Facilmente se compreende que tais aventuras só possam ser vividas por espíritos experimentados, formados, armados para tal viagem.
O terceiro momento desta dialéctica conduz este aventureiro espiritual a um mundo onde o tempo e o espaço mudam totalmente. Faz-se justamente notar que o homem ocidental era como que o passageiro de uma viatura, com o nariz encostado ao vidro traseiro da viatura e que vê fugir os objectos da sua existência numa estrada sem fim. A memória presente dos acontecimentos passados não é mais do que a imagem mental de uma escolha de factos antigos. Comportamo-nos hoje em função de um resíduo mental do passado que não coincide com a realidade. O tantrika não tem a impressão de se inscrever numa paisagem – como o automóvel atravessa o espaço camponês. À sua volta, nada há; nele se coagulam as forças cósmicas e o rasto que deixa atrás de si são fragmentos desta consciência, que não é mais do que uma participação na energia total do mundo. Originalmente existe, portanto, um casal: «Mahakala» (o grande tempo) e a «Deusa». Da sua perpétua copulação nascem e renascem o mundo, o tempo cósmico e o espaço, que se medem apenas pela dimensão das realidades criadas. O acto sexual humano reconduz os indivíduos a esta acção primordial. O olhar iluminado do adepto permite-lhe apreender, para além do tempo psicológico, o «grande tempo» no qual se opera realmente a união carnal. O sexo da mulher é a fonte de toda a criação. Quanto ao homem, o seu princípio primordial, invisível, escondido no esperma, está na origem de todas as coisas. Assim, o acto sexual não se mantém no plano da actividade da psique «primária», atinge um estado de consciência superior que permanece quando o orgasmo físico termina. Prolonga-se numa espécie de estado de vigi1ia sempre mais estável, na medida em que o discípulo é capaz de inscrever a sua actividade sexual no quadro primordial do jogo divino. Deste modo entra numa duração nova, onde o tempo não se mede com o auxi1io de um relógio.
O tantrismo toma, portanto, de boa vontade a forma do culto da «Deusa». Esta, efectivamente, é a manifestação perceptível dos efeitos do acto sexual primordial, que, esse, continua escondido. Ela é ao mesmo tempo a mãe e a iniciadora do prazer. Toma um aspecto terrível para conduzir o seu «filho espiritual» para fora dos trilhos do enviscamento psicológico. Provoca-o para a prática dos actos de sinal inverso para o fazer atingir uma espécie de maioridade interior. Transforma-o em cadáver impassível, ressuscita-o com um acto de amor; abre-lhe a via do desapossamento progressivo das aberrâncias do seu eu para o pôr em ligação directa com as forças cósmicas do mundo de que não é mais do que um cruzamento, um nó, uma encruzilhada. Entrado assim neste novo espaço-tempo, o adepto continua a viver uma vida normal, mas conserva sempre presente no espírito a dimensão nova dos seus actos. Pode viver então uma existência humana, desembaraçada da angústia do seu fim. O homem, com efeito, passa a sua vida a ruminar o gosto da sua própria morte; saboreia-a longamente com antecipação, e muito especialmente no decorrer dos desaires amorosos. A via tântrica é uma via de saúde e de salvação (estas duas palavras têm a mesma etimologia) para aquele que considera que a doença não é mais do que um sinal precursor da morte e que a consciência angustiada não é mais do que o pródromo do aniquilamento. Não obstante a sua aparência «fácil», o tantrismo não vê na sexualidade como uma actividade «laxista», parte desta reclamação fundamental do corpo e do coração para inaugurar uma via ascética que de modo algum elimina o acto carnal. Antes o situa como o ponto de partida de uma viagem apaixonante mas árdua.
Este relance de olhos pela tradição indiana coloca-nos, à maneira de conclusão, uma questão difícil. Este conhecimento secular depende apenas da arqueologia? Pode, nos nossos dias, ajudar-nos a encontrar uma nova arte de viver?
Certamente que não é fácil manejar a grade de leitura que nos permite apreender as descobertas do antigo Veda , o sentido profundo dos mitos, e entrar no quadro de uma lógica que maneja melhor as experiências e as coisas do que os conceitos e as palavras. Contudo, esta investigação impõe-se.
A sociedade ocidental está em plena mutação. Os quadros da sua moral tradicional afastam-se para deixar aparecer muitos problemas não formulados ou não resolvidos. Esta inquietação, à qual com demasiada frequência se chama «decadência», representa, talvez, também, os primeiros sinais de uma nova consciência.
Um olhar para as civilizações antigas que tiveram a coragem de colocar e de resolver um certo número de questões respeitantes à sexualidade não parece um gesto supérfluo. A visão tântrica do mundo não está ligada, como vimos, a uma estrutura religiosa particular, e singularmente à formulação que dela deu o hinduísmo. É uma atitude de espírito, de uma rara acuidade, de uma amplidão excepcional. Pode provocar-nos para uma nova precisão, abrir horizontes limitados por sujeições lamentáveis.
E verosímil que uma tal mutação venha a operar-se de maneira imprevisível. Não será, talvez, obra dos filósofos de profissão, dos moralistas de ofício ou «daqueles que falam de direito». O cientista, o técnico, o artista e o homem de rua serão, sem dúvida, os promotores e os garantes de uma evolução durante muito tempo paralisada pelas palavras. É um assunto de conhecimento «cordial», de mística, e não está dito que esta ciência subtil seja privilégio daqueles que se dizem consagrados a tal investigação: a integração espiritual da sexualidade pressupõe seres livres nos seus movimentos.
A.-M. Cocagnac
Bibliografia sumária das obras acessíveis em francês Le Véda, Premier Livre Sacré de l'Inde. Textos reunidos, por Jean Varenne (Paris, Planète-Marabout, 1967, dois volumes). P. Rawson, L'Art du Tantrisme (Paris, Arts et Métiers Graphiques, 1973); Tantra (Paris, Le Seuil, 1973). J. Evola, Métaphysique du Sexe (Paris, Payot, 1968); Le Yoga Tantrique (Paris, Fayard, 1971). A. Avalon, La Puissance du Serpent (Paris, Dervy, 1970). M.-P Fouchet, L 'Art Érotique en Inde (Lausana, La Guilde du Livre/ /Clairefontaine, 1957).