ESPIRITUALIDADE E SEXUALIDADE

Ocidente e poder do amor

A.-M. Cocagnac

Maurice Cocagnac.

Nasceu em 1924 e entrou, em 1945, para a Ordem de São Domingos. Estuda Filosofia e Teologia em Roma. De 1953 a 1969 participou nas revistas La Vie Spirituelle e L’Art Sacré (Edit. du Cerf) e dirige uma colecção de livros bíblicos para as crianças. De 1970 a 1974 estudou o sânscrito e a civilização indiana na EPHE. Anima na Federação Francesa dos Praticantes De Ioga, dois seminários sobre a voz e a criatividade pelo som e redigiu, em 1974, o «diário» da sua viagem à Índia.

Uma simplificação lamentável opõe o Oriente ao Ocidente como dois blocos radicalmente separados. De facto, o Oriente é uma enorme massa de terras, de gentes e de tradições, enfrentando-se, muitas vezes, mais do que confluindo. A uma escala menor, o Oeste nada tem a invejar-lhe. Segundo as tradições cristãs, judaicas ou mesmo islamicas, os Celtas, os Germanos e as numerosas populações que floresceram muito cedo nas costas deram o perfil de uma religiosidade complexa e persistente. Nos países de grande tradição cristã, o fio condutor do pensamento da Igreja tentou, muitas vezes, reunir mitos, factos culturais, rituais de festa, cantos e danças num verdadeiro patchwork.

Amor-poder e amor-afecto

A dialéctica do amor divino e do amor profano sempre interferiu com o antagonismo fecundo que opõe o amor-afecto ao amor-poder. A literatura ocidental pode fornecer ilustrações que têm valor de ponto de referência: é, efectivamente, uma imagem escrita da vida. Platão, os trovadores, os Árabes e os Celtas, Tristão, Isolda, D. Juan, D. Elvira, o Cid e Ximena, Novalis, Rimbaud, Breton e Marguerite Duras podem dar-nos, ponto contra ponto, o contracanto pagão do pensamento cristão oficial que teve a parte de tenor?

A ANTIGA MAGIA

A lenda de Tristão e Isolda é uma das primeiras manifestações de um mundo religioso anterior ao cristianismo. A ressurgência destas antigas tradições contrariou a valer o progresso do pensamento cristão romanizado. O fundo céltico primitivo serviu de ponto de partida para aventuras espirituais divergentes.

Para além das diversas redacções do texto, encontra-se a atitude fundamental do primeiro contador: a magia explica tudo, desculpa tudo e muito especialmente o comportamento marginal dos heróis cujos actos são considerados como imorais, tanto pelo direito romano, como pelo código da cavalaria. O amor inscreve-se, aqui, num tecido maravilhoso, onde o jogo das causas e dos efeitos já não depende da responsabilidade pessoal. Um único ponto de direito franco se mantém: a obrigação da «promessa». Mas tanto Isolda como Tristão estão votados a uma forma de «alto feito» que se opera na ordem invisível da magia. O amor é aqui um poder no qual os amantes participam para alcançar um transe que os transporta para a morte. No entanto, esta evolução fatal destrói a própria morte para admitir os dois corações ligados por magia no mundo do amor indestrutível.

«Haveis bebido o amor e a morte»

Todos os acontecimentos significativos da narrativa são marcados pela magia. Tristão chama-se assim por ser filho de uma mulher que morreu de tristeza. Está votado à batalha, mas não como qualquer outro cavaleiro. O campo dos seus combates estende-se pela ordem sobrenatural e o seu próprio amor transpõe esta fronteira. As drogas têm o seu lugar, importante, nesta história. Tristão, intoxicado pela lança de Morhot, será curado por Isolda, que parece pertencer a uma estirpe real que em parte fundamentava o seu poder na feitiçaria das suas rainhas: «Isolda conhecia os bálsamos.» Mais uma vez salvará Tristão da morte ministrando-lhe o antídoto do veneno do dragão. Quanto à mãe de Isolda, ela compôs, por ciência e por magia, o filtro da fidelidade absoluta. Depois de a terem visto, os amantes vivem uma exaltação semelhante a um êxtase: é a entrega das armas de cavaleiro que os levará a cavalgar pelos mundos sobrenaturais. Uma sarça indestrutível aparece: ela une os seus corpos na vida e na morte. É um laço de amor e de dor: «Haveis bebido o amor e a morte.» Mais tarde, Isolda procurará plantas venenosas para se desembaraçar da serva Brangien. Se a denúncia dos quatro barões faz o efeito de um veneno, os amantes conhecem visões divinas: habitam em espírito o castelo que é o paraíso dos amantes.

Lêem a felicidade na pelagem multicor de Petit-Crû, o cão «psicadélico». Eles vivem na morada de vidro onde tudo é refractado segundo o indício da verdade. Um último engano da sorte, transformando o branco da vela em negro fatal, instala-os, para além da morte, no destino eterno da sua união.

O amor fatal sobrevive no romantismo

A influência de Tristão será importante na Europa. Continuará durante muito tempo a manter uma concepção mágica do destino amoroso. Quando, no século das luzes, a magia parecer ultrapassada, a exaltação do destino amoroso pela alma romântica dependerá do archote aceso outrora por Tristão para designar os seres excepcionais marcados, contra sua vontade, pelo sinal do amor-poder. Certamente, Novalis não regressou aos quadros mágicos da antiga narrativa, mas uma certa concepção do destino amoroso, o sentido da ligação amor-morte, o jogo subtil das presenças na ausência encontraram as suas raízes profundas no conto da antiga Bretanha. Não é, pois, por acaso que Wagner o fez entrar no seu espaço musical. Assim continua mesmo ainda nos nossos dias, não obstante todas as «revoluções» dos corações e dos corpos, o fascinio de um amor-poder que é participação num domínio de forças superiores.

O PODER DO DESEJO

A tradição ocidental oferece-nos também múltiplas variações sobre o tema do amor-desejo.

O regresso periódico da necessidade física, o cuidado de renovar uma experiência infatigavelmente recomeçada, puseram em evidência uma necessidade do coração humano que parece situar-se numa ordem muito especial. Que espera o homem do seu próprio desejo? Será a saciedade ou, pelo contrário, a insatisfação? Por vezes parece encontrar-se nesta última uma força capaz de o arrastar para reais descobertas. O poder do desejo não poderia, portanto, identificar-se com o poder da excitação fisiológica. Esta impossibilidade de completar, longe de ser agora simplesmente negativa, cria uma reacção que leva o homem a procurar aventura nas vias mais diversas.

Uma busca da eternidade

O crescimento de uma certa forma de desejo pode conduzir um ser para a degradação progressiva: é a experiência cruel da morte longamente saboreada antes do óbito. Este impulso não é simplesmente a fome ou a sede que periodicamente encontram o seu apaziguamento, é um desejo de natureza materialmente crescente que os alivios carnais não fazem mais do que avivar até à época cruel do demónio do meio-dia. Com efeito, passando pelo meridiano da sua existência, o homem abarca de uma só vez o declive futuro da sua vida. Procura compensar a irritação de uma procura insaciável com atitudes ineficazes. Acha que deve continuar façanhas sexuais que lhe aparecem, mais como proezas quando a sua energia tende a baixar.

O amor conduz ao paraíso ou ao inferno?

No muito belo romance de Junichiro Tanizaki A Confissão Impudica vemos um velho professor jogar, no limiar da velhice, a sua razão e a sua saúde para tentar atingir a satisfação suprema após jogos que dependem do fetichismo e do voyeurismo. Intoxicar-se-á com as drogas pretensamente «estimulantes». Acabará por encontrar no ciúme o picante que já não esperava dos afrodisíacos: «Neste momento, eu imaginava que penetrava num mundo a quatro dimensões. De súbito, vi elevar-me cada vez mais alto, até ao alto do sétimo céu. Todo o passado não era mais do que ilusão: agora eu tinha a verdadeira existência. Minha mulher e eu estávamos enlaçados. Talvez eu fosse morrer, mas o momento que vivia era a eternidade.»

Este autor japonês revela-nos com exactidão o sonho de muitos dos nossos contemporâneos ocidentais. A expressão «sétimo céu» e o termo ou «eternidade» pertencem igualmente às culturas orientais e ocidentais. Mais tipicamente budista é a referência a esta forma de iluminação que assegura a passagem da ilusão à realidade. Seria fácil encontrar no testemunho e nos escritos dos nossos contemporâneos ocidentais uma procura tão semelhante àquela que Tanizaki descreve. De facto, a experiência do velho professor é o resultado de uma manobra de sua mulher para fazer subir a tensão arterial de seu esposo e provocar uma hemorragia cerebral no seu companheiro, que para ela se tornou intolerável. Ela soube encontrar no desejo insaciável deste homem a envelhecer o meio para se desembaraçar dele sem nunca deixar de o satisfazer. Num clarão de lucidez, ela confessará: «Não será que, não obstante o ambiente em que cresci, eu não possuía uma natureza assustadora?»

O erotismo contemporâneo procede de uma semelhante natureza assustadora? Seria preciso agora admitir – se se considerar o sucesso da sua comercialização – que esta natureza pertence a uma multidão e não apenas a seres excepcionalmente fora dos eixos. Se o Eros sacralizado depende de uma filosofia que fazia do amor uma ascensão para o absoluto, o desejo insaciável, privado desta escada mística, mais parece pôr a tropeçar os que arrasta a atirá-los para o pequeno inferno de uma insatisfação crescente.

A precocidade sexual caracterizaria uma sociedade decadente

Os biologistas observaram um facto maravilhoso que diz respeito ao crescimento dos seres humanos de hoje. Pode ser observado nas populações de alto nivel técnico que atraem a si, para seu proveito, a maior parte dos recursos mundiais. Trata-se do aparecimento sempre mais precoce da maturidade sexual. A data média do aparecimento das regras situa-se, nos nossos dias, pelos dez ou onze anos, em vez dos dezasseis de há uns decénios! Procurou-se a explicação deste fenómeno em factores genéticos ou nutricionais, mas parece realmente que esta modificação depende essencialmente de factores sociais e culturais. O passado conheceu, segundo parece, flutuações semelhantes. Evoca-se o apogeu do Império Romano, o que não é tranquilizante: os apogeus estão próximos da decadência.

Este sinal fisiologicamente inscrito na sociedade de hoje exclui toda a ideia de uma mutação moral inexplicável. É preciso tentar encarar o conjunto dos factores que dão razão a esta transformação e permitem vislumbrar a possibilidade de um novo equilibrio.

Uma compensação às agressões do século XX

O erotismo contemporâneo aparece como uma das compensações possíveis do stress colectivo que afecta o homem deste século. Nota-se principalmente nas sociedades que optaram por um certo tipo de desenvolvimento. O stress não é, como se acreditou durante muito tempo, a simples tensão nervosa causada pela aceleração do tempo trabalhável, as agressões repetidas de um mundo mecanizado, etc., é, fundamentalmente, a reacção do corpo a toda a modificação do comportamento habitual de um indivíduo. Esta modificação pode ser positiva ou negativa. Seja qual for, portanto, o sinal que afecta o stress, o organismo tem de apelar para um «fundo de estabilização» cuja natureza é ainda mal conhecida.

Isto é inteiramente observável no caso de um exército em campanha. Os jovens mobilizados, pouco adaptados ao choque dos horrores da guerra, concebem uma tal angústia que procurarão a todo o custo o «repouso do guerreiro» de natureza essencialmente sexual. Esta compensação é também a do jovem «médico», posto na presença brutal da doença e da morte.

Entre as hipóteses de bom stress que a sociedade de hoje permite, o prazer do amor físico parece ser ainda o mais espontâneo, o mais livre. Num tempo em que os lazeres e as férias se compram por catálogo, as próprias «distracções» custam caro e seguem programas de distribuição imperiosos. O amor físico parece ser, portanto, para muitos, a única porta de saida para um mundo que não seja aquele da produção e do consumo. No meio da sua existência, o homem conhece uma crise ligada à tomada de consciência, por vezes brutal, do decrescimento das suas forças vivas. Apresentando o estado actual dos trabalhos sobre o stress, Ivan S. Khorolo recordava a frase de Pavlov: «O reflexo de objectivo é a forma essencial da nossa energia vital.» O homem maduro sente enfraquecer o seu reflexo de objectivo, que volta a pôr-se em causa, e a energia que lhe resta pode ser delapidada nas procuras mais dispersas.

O nosso tempo mostra-nos, uma coisa nova, a juventude afectada por um problema semelhante. Na época em que a sua consciência se abre, o adolescente de hoje sente-se muitas vezes oprimido pela questão torturante: «Para quê?» O espectáculo da sociedade que o rodeia nem sempre o ajuda a reencontrar senão o seu reflexo, pelo menos a sua determinação de objectivo. O objectivo que suscita o impulso vital não é unicamente, com efeito, um fim exterior ao sujeito, pode ser o próprio sujeito como ser capaz de se transformar. O homem apercebe-se de que fez do seu cérebro e de todo o seu ser um uso limitado. Toma-o então o desejo de passar a planos de consciência superior e susceptiveis de resolver contradições íntimas que uma demasiado grande actividade traz o risco de lhe esconder. A vida contemporânea oferece-nos um quadro apaixonante de investigação. As investigações de grupo sobre os poderes do espirito, a redescoberta de muito antigas «vias» espirituais, a difusão na educação e na cultura do adquirido pela psicologia moderna são outros tantos convites a uma conversão no sentido interior. Assim ganha o homem consciência de um poder que pode encontrar no amor a sua energia fundamental.

O SENTIDO PROFUNDO DO PRAZER

O prazer foi durante muito tempo tolerado mais do que admitido na estrutura moral do Ocidente. A afectação de virtude escondia uma estranha filosofia, latente mas eficaz. Sem querer pressionar demasiado a etimologia, não esqueçamos, no entanto, que preux, prouesse, prud’homme e, finalmente, pruderie pertencem a uma linhagem de vocábulos que se situam todos na ordem do útil. Trata-se de uma prudência muito pragmática, que se casa de boa vontade com o «honesto», mas se mantém à distancia do «belo» e do «bom». Nesta perspectiva, o sentimento nascido do sentimento de superabundancia não tem lugar. O homem «técnico», habituado à economia dos efeitos estritos, considera a Natureza como uma perigosa gastadora. A economia vital, assegurando-lhe a selecção do efeito por uma proposição superabundante de causas, continua a ser-lhe indecifrável.

Certamente que esta visão do prazer foi chocar com as correntes mais contraditórias: o amor platónico retirava-se numa busca da beleza; o amor mágico de Tristão e Isolda resolvia tudo na força do «poder» que ligava os amantes; Corneille virilizou a mulher para lhe permitir atingir o plano do amor racionalizado pelo orgulho do homem; quanto ao romantismo francês, com gosto se deleitava numa insatisfação infinita. Não acontecia o mesmo com o romantismo alemão, que mergulhava as suas raízes num misticismo secular. Um texto de Novalis é aqui da mais alta importancia: «Regressar a si mesmo significa, para nós, abstrair-se do mundo exterior. Para os espíritos, a vida terrestre chama-se de maneira analógica contemplação interior, movimento para o interior, actividade imanente. Assim, a vida terrestre não é senão o ressalto da fonte original da reflexão, de um movimento primordial para o interior, de um recolhimento em si tão livre como a nossa reflexão. Inversamente, a vida espiritual neste mundo nasce da superação de toda a reflexão primordial. O espírito desfralda-se novamente, sai mais uma vez de si mesmo, afasta uma parte desta reflexão. É neste momento que diz pela primeira vez: “Eu.” Vê-se aqui quanto ir para o interior ou ir para o exterior são coisas relativas. Aquilo a que chamamos entrar em si é, na realidade, sair de si, é reencontrar a forma primordial.»

Uma experiência alargada do prazer

Se o prazer é considerado como uma actividade puramente «egótica», esta função surge então como um retiro desastroso. Desemboca no isolamento. Todavia, o que diz Novalis da contemplação interior pode ser também aplicado à noção de prazer. Entrar em si para reencontrar, a partir de si, o campo de uma experiência alargada não é, de maneira alguma, um acto negativo. E a descoberta do «eu» para além do «me», do sujeito como sujeito, e não já como objecto devorando a energia que capta nos outros.

Gozar por si ou pelo outro

O vocabulário espanhol do primeiro Don Juan é significativo. O verbo «gozar» (desfrutar) é transitivo directo; enquanto o francês permite apenas «desfrutar de» ou, simplesmente, «desfrutar», o espanhol pode dizer: «Gozar alguém.» Certamente que se pode dizer: «Alegrar alguém», mas a abstracção do termo teria, neste caso, o valor de eufemismo. Podemos lamentar que o francês não tenha conservado esta forma directa, tal como se emprega: «gozar» tornou-se suspeito de egoísmo, ao significar o acto pelo qual se confisca em seu proveito a energia do ser que se pretende amar.

Existe na natureza humana um poder susceptível de superar as avarezas do me para atingir o «eu» generoso?

Para Platão, o Eros é a procura da beleza

A possibilidade desta extensão pode ser detectada nas reflexões sobre o Eros. Já Platão, no Banquete, mostrava que Eros pode ser considerado como «genitófugo», não porque se separe das suas raízes libidinais, mas porque opera a partir delas uma série de experiências que integra numa visão espiritual superior. De corpo em corpo, de coisa em coisa, o brilho das diversas experiências estéticas conduz no sentido da percepção de uma beleza em si. Não está simplesmente aí um exemplar etéreo, um canone abstracto das divinas proporções, mas uma espécie de universal concreto e vivo – poderiamos dizer um meio activo de beleza pura, no qual germinam todas as criações artísticas.

Eros libertará a sociedade?

Herbert Marcuse descreveu este ponto de chegada. Põe-se a sonhar com uma erótica situada num meio cultural e social liberto; ela nada teria a ver com as invenções que são o fruto do sentido envilecido e da vulgaridade de uma humanidade alienada: «Nada na natureza de Eros justifica a noção segundo a qual a “extensão” do instinto está limitada ao domínio corporal: Se a separação antagónica da parte física e da parte espiritual do organismo é ela própria o resultado histórico da repressão, a superação deste antagonismo abriria a chamada “esfera espiritual do instinto”.»

Esta sublimação a partir de uma concepção não repressiva do Eros serve de base, para o autor, a uma grande experiência. De boa vontade ali vê relações do grupo, condições de trabalho, a permissão do jogo, todas as coisas que devem assegurar as bases de uma nova criatividade. O autor procura ultrapassar o pessimismo de Freud. Reivindica os direitos da plenitude do prazer, entendendo-se, por isso, não a satisfação que procure apenas o seu crescimento interior, mas uma expansão que lhe abre espaços novos. Ele procura situar-se no ponto de convergência do principio da realidade e do princípio do prazer analisando efeitos onde, de facto, estas duas referências coincidem.

Talvez já não seja possivel ver hoje, sete anos depois de 1968, as coisas da mesma maneira. Com o recuo, as respostas parecem hoje mais complexas.

Uma transmutação da energia

Nos nossos dias sentimos que se desvanecem as fronteiras entre a matéria e a energia, a energia e a função, a função de base e os seus harmónicos espirituais. O Eros não aparece como identificável com o estado nascente do instinto, revela a amplitude dos poderes do amor. Eros representa, neste domínio, simultaneamente, a matéria energética e o campo da sua própria extensão. O espírito é da mesma ordem, realidade pontual que desempenha o papel de pólo porque o pólo é parte integrante de um campo dado. As religiões que acreditam na graça de um Deus concordam, de bom grado, que este dom gratuito não destrói a Natureza. O pólo divino manifesta-se em nome do pólo normal do espírito humano. Deus entra no campo do desenvolvimento energético de um ser e aceita ser, também ele, parte integrante deste campo. Para viverem esta realidade, os Hindus identificam o âtman com o Brama, os budistas tentam a experiência do vazio como condição, o desprendimento do instinto sexual. O cristianismo tenta viver a Ressurreição de uma maneira original: ora se aproximará dos prévios budistas, ora a erotização da linguagem mística deixará aparecer a possibilidade de transmutação da energia profunda.

O obsceno é uma fonte de ilusões

Alan Watts fez notar que a grande ilusão que os Indianos chamam «Maya» é a medida de tudo para o «eu» artificial do homem. Ela construiu uma espécie de teatro onde se distingue a cena dos bastidores. O jogo de miragem convencional pressupõe que só se considere o palco: o desempenho que se desenrola poderia ser chamado «in-cena», o que não poderia ser mostrado. De facto, o que se passa nos bastidores não é mais real do que aquilo que se pode perceber do acto cénico. Os bastidores, pelo contrário, são uma reserva permanente de ilusões. Os promotores da pornografia vendem o stock de um amor ilusório e de um êxtase inexistente. Os consumidores deste produto aceitam jogar o jogo da ilusão. Ao entrarem, compraram o calafrio de uma corrida para uma insatisfação sem fim. No coração desta maquinaria da ilusão amorosa, o primeiro que chega vem fazer a sua proposta de quimeras que prosseguirá em imaginação.

O amor é percepção da uníversal harmonia

O poeta alemão Eichendorff retomou, numa das suas canções, o tema da existência assimilada ao desempenho do teatro. Propõe a viagem dos Wandermänner, dos beatniks místicos que procuram libertar-se dos limites de um espaço convencionado. Então, diz ele, o tecto voa, os bastidores recuam. Cada um tem realmente o sentimento de ter o papel efémero numa peça em que as pancadas antes de subir o pano foram batidas na origem do mundo:

E ninguém entre esses actores
Conhece o último acto,
Só aquele que lá no alto marca o compasso
Conhece finalmente o desenlace.

O verdadeiro amor tem o poder de ultrapassar o mundo da ilusão. Não se deixa apanhar pelos constrangimentos do puritanismo nem pela insatisfação do libertino obnubilado pela perseguição de um amor finalmente impossível. Segue a lei de uma realidade que o arrasta para além das miragens.

O poder do espírito do homem é maior do que ele julga. O amor que se decanta como um bom vinho não conhece o desencanto. O encantamento não é, efectivamente, encantamento, enfeitiçamento pelas ondas fugitivas da ilusão, é a percepção da harmonia que faz reinar no desempenho «aquele que conhece o último acto». Esta harmonia torna presente e acessível ao coração a própria estrutura do real de que o amor é a energia fundamental.

A.-M. Cocagnac