Jean During
Jean During Do Instituto Francês de Teerão.
No plano das práticas espirituais tangíveis, os devotos podem seguir o Enviado nalguns pontos precisos. Além das preces rituais há as preces super-rogatórias e a leitura, ou salmodia, quotidiana do Corão. O uso das litanias (zikr), difundido por todo o sufismo e consistindo na longa repetição de uma palavra ou de uma fórmula, não parece ter a sua origem no ensinamento do Profeta. Sabe-se apenas que lhe aconteceu repetir toda uma noite um mesmo versículo do Corão, para interceder a favor do seu povo, e que tinha o hábito de implorar setenta vezes ou cem vezes a clemência divina repetindo a fórmula: «’Astaqfirullãh».
Uma prática de grande eficácia espiritual foi, em vida do Profeta, e algum tempo depois, a prática da guerra santa. O Corão insiste nas suas virtudes, mas distingue a grande guerra da pequena; o verdadeiro combate é no campo de batalha do eu, onde se enfrentam os dois princípios da alma carnal e do se imperioso (nafs ammãra) e da alma angélica.
Tal como na guerra, a finalidade não é matar o se imperioso, mas dominá-lo e pacificá-lo. O corpo é o veículo indispensável da alma, sem o qual não há aperfeiçoamento; logo, não é mau em si, tal como a carne não significa pecado. Apenas os excessos e as rebeliões da alma animal são prejudiciais à alma angélica.
No islão, e nomeadamente no sufismo, o demónio nunca é considerado como um deus do mal lutando contra Alá. O próprio Satã é um adorador cuja insubmissão foi punida com o exilio. Só tem poder sobre o homem que se desvia de Deus e, em vez de um princípio cósmico negativo, representa as baixas tendências do nosso ser, nomeadamente o orgulho, principal obstáculo ao aperfeiçoamento interior. O famoso aforismo sufi: «Quem não tem mestre, tem Satã por senhor», pode traduzir-se assim por: «Quem não tem Deus por senhor, está abandonado a si mesmo», ou seja, ao seu eu imperioso. A única existência subjectiva do demónio aparece numa interpretação esotérica muito interessante, o caso de possessão ou de tormentos ocasionados por um génio. Quando um homem «ultrapassa os limites» é, por vezes, perseguido por espíritos especiais cuja função é essencialmente punitiva. Os mesmos espíritos não têm o direito de atacar os crentes. Não são maus em si mesmos, cumprem apenas o seu dever. Obedecem igualmente a todos os santos que, em muitas ocasiões, fazem a função de exorcistas.
A primeira tendência da mística muçulmana é uma forma de ascetismo e de piedade, inspirada pelos companheiros do Profeta. O crente que queria aprofundar a sua fé começava por observar escrupulosamente as obrigações rituais, para cumprir devoções super-rogatórias; desinteressava-se completamente do mundo material, sem, todavia, se isolarem dos seus semelhantes. A pobreza parece ser o ponto comum de todos os místicos do começo do islão. Na sua Vida dos Santos (Tazkirat al-awlyã’), 0 grande Attãr esboça um quadro muito particular da sua vida: eles renunciaram ao mundo e exercem humildes profissões que os misturam com a multidão anónima, e ninguém lhes presta atenção, a menos que o comportamento insólito lhes atraia a raiva do califa; eles não estão ainda organizados em tariqa, em confrarias, mas frequentam-se livremente, tirando cada um ensinamento daquele que o precede na via da perfeição. Não obstante as aparências, há, mesmo assim, uma transmissão iniciática de mestre a aluno, mas opera-se fora de todo o formalismo, de todo o ritual; não há pompa alguma nem cerimonial algum entre estes piedosos ascetas, voltados completamente para o sol da Unidade. Os hagiógrafos descrevem-nos acentuando a dureza da sua via: jejum, vigília, oração, exame de consciência, pobreza, purificação do coração, generosidade, humildade, desprendimento, resignação, temor de Deus… Mas a compensação desta ascese severa consiste na aquisição de virtudes raras: no abandono total e confiante em Deus (tawakkul), o domínio perfeito de todos os instintos e dos impulsos do eu imperioso, o conhecimento de si, que é o fruto deste domínio, e, portanto o conhecimento de Deus começa por ser em si mesmo que é preciso procurá-Lo. O conhecimento divino implica, bem entendido, o conhecimento dos segredos do mundo espiritual, e este comanda a ciência da natureza subtil dos seres e das coisas.
Eis a razão por que os santos muçulmanos são por acréscimo gnósticos e taumaturgos dotados de carisma: se bem que não procurem de modo algum estes poderes, eles são-lhes outorgados, garantia tangível de que a sua experiência interior não é um simples efeito de auto-sugestão, mas bem o fruto de um conhecimento real e experimentado da verdade última. Voltaremos a este ponto. O que é preciso sublinhar aqui, é também o aspecto ético da santidade islâmica, aspecto comum às religiões reveladas (cristianismo, judaísmo). E como a ética está baseada na relação com outrem, os místicos não se retiram do mundo, mas, pelo contrário, santificam-no pela sua presença excepcional e concedem a sua direcção a quem quer que a deseje. Quando apareceu a tendência para a via eromítica, monacal ou errante, a voz do povo forjou hadis do género: «Nada de monaquismo errante no islão.» No entanto, certos piedosos ascetas pregavam nas praças públicas, viajando de cidade em cidade, sós ou acompanhados por alguns discípulos, outros falavam e ensinavam apenas a pequenos grupos fervorosos, outros, enfim, eram ignorados por todos, e pouco lhes importava serem conhecidos ou não, respeitados ou desprezados, desde que Deus os visse e eles vissem Deus.
A mística muçulmana começa verdadeiramente por um sentimento constante de presença divina, conforme com a palavra do Profeta: «Reza a Deus como se O visses, e, se não O vês, vê-te Ele.» Sentir Deus continuamente presente é o elemento dinâmico da espiritualidade muçulmana; o olhar divino é a fonte de todas as graças e todos os princípios de aperfeiçoamento interior voltam definitivamente para ele. Sem a presença do Outro, o místico encerra-se num solipsismo, não faz mais do que a volta a si mesmo, apenas aperfeiçoa a sua natureza «criatural», e o seu esforço não tem valor algum perante Deus. A grande lição do sufismo é, para além do amor do próximo pregado pelo cristianismo, a lição do amor divino. Quando o iniciado se esquece de si mesmo na contemplação do Ser supremo, é aniquilado e deve apenas a sua sobreexistência (baqã’) à graça divina. Já não tem eu, todo o seu ser está aniquilado na divindade, ele já não pode ter um só pensamento por si mesmo. Este estado é admiravelmente expresso por esta parábola de Rumi: «Um sufi vem bater à porta do Amigo: “Quem és tu?”, pergunta-lhe este. Ele responde: “Sou eu”. – “Vai-te embora, não te conheço!” Depois de um ano de ausência, queimado de amor e de mágoa, voltou a bater à porta: “Quem és tu?”, pergunta-lhe o Amigo. E desta vez ele responde: “Sou tu”. – “Entra, então”, diz-lhe o Amigo, “uma vez que és eu; não há lugar aqui para dois eus.”»
Quando se evocam os piedosos ascetas do início do islão, tem de se saber que, não obstante as aparências, a sua vida era realmente a do amor divino e não a via ressequida e estéril dos ascetas vulgares (zuhd). Muitos crentes, com efeito, assombrados pelo medo do Inferno ou motivados pelas recompensas paradisíacas, entregavam-se às mortificações e vendiam essa vida pelo outro mundo. Pelo contrário, o verdadeiro místico vende os dois mundos por um só olhar de Deus, e quando ele se esquece de si próprio em Deus, tão-pouco lhe importa o paraíso quanto o Inferno.
O nível último da perfeição interior não é o acabamento de um processo humano. As almas chamadas a esta elevação não são almas humanas vulgares, mas criaturas especiais, inteiramente predestinadas, da mesma maneira que os grandes enviados. Se o islão admite que todo o homem pode ser salvo, em troca os místicos são bem forçados a verificar que nem todo o homem é qualificado para percorrer a via até ao fim. Cada um pode alcançar a sua própria perfeição, mas existem desníveis consideráveis entre as capacidades das almas. O sufismo começou por se constituir sob a autoridade espiritual dos mestres, que são considerados quase sempre como almas especiais e predestinadas, mas também, progressivamente, se desenvolveu horizontalmente nas grandes massas de indivíduos. Para os homens vulgares, métodos e técnicas sempre mais específicos foram preparados, que lhes permitem, pelo seu próprio esforço, combater o eu imperioso e, com a ajuda de um mestre autêntico, conhecerem-se e conhecerem Deus. Viu-se anteriormente os elementos puramente ascéticos da via, que estavam em uso no começo do sufismo. O retiro espiritual e a prática do jejum, total ou parcial, são, por vezes, aplicados a casos particulares mas não constituem a regra geral, salvo nalgumas raras ordens de dervixes. Os graus de iniciação que só comportam provas para a alma e o corpo não são objecto de uma ascese excessiva. Existem, bem entendido, casos excepcionais de jejum total extremamente prolongado (como Tostari, que não comia mais do que uma amêndoa de setenta em setenta dias), mas têm de se considerar estes casos como carismas, dons sobrenaturais e não exemplos a seguir.
Alguns séculos depois da Hégira, sob a influência provável do hinduísmo ou do cristianismo, introduziu-se um método particular de oração jaculatória próxima do hosicasma e do mantra-ioga: o zikr, que consiste na longa repetição de uma fórmula ou de uma palavra. Esta pode ser, por exemplo, a profissão de fé: La ‘illãha ‘illa Allãh, ou, muito simplesmente, huwa (Ele).
Cada ordem de dervixes tem as suas próprias tradições, e, nalgumas, o zikr é acompanhado por um exercício respiratório preciso: assim, o hu de huwa pronuncia-se, por vezes, expirando profunda e ruidosamente, o wa aspirando. Na profissão de fé, cada vogal é posta em relação mental com uma parte do corpo simbolizando regiões da alma (coração, fígado, plexo, garganta, etc.), sendo esta circum-ambulação mental acompanhada de um movimento circular e rítmico da cabeça. Uma técnica deste tipo permite a quem quer que seja experimentar um estado especial que lhe facilita a concentração em Deus e na alma e ocasiona a perda momentânea da consciência de si numa espécie de transe extático. Os zikr deste tipo são chamados «articulados» (jali) e são geralmente realizados em comum em reuniões privadas ou públicas. A forma muda (khafi) é o outro tipo de zikr, mais próximo da meditação. A própria palavra zikr significa recordação, memória, e a sua prática prolongada conduz a um sentimento incessante da presença divina. Neste estádio de zikr, a recordação torna-se parte integrante do ser e transforma realmente o indivíduo.
O zikr é, por vezes, acompanhado de canto ou de instrumentos de percussão, e, em certas ordens de dervixes, a música sagrada é praticada como um meio de oração e de meditação. Estes concertos espirituais (samã’), reprovados, por vezes, pelos ortodoxos, fazem parte dos ritos mevlevi (os famosos dervixes rodopiantes) dos Tshishtis, bem com de alguns outros menos ortodoxos da África do Norte e da Turquia. O estado extático gerado pelo samã’ suscita, por vezes, uma dança espontânea e, entre os mevlevi, esta dança foi cuidadosamente codificada segundo um cerimonial impregnado de simbolismos cósmicos. Os instrumentos de predilecção são a voz, o adufe (daf) e a flauta de cana (ney), por vezes um tipo de alaúde (tanbur) e, nos ritos públicos, o oboé (zurnã). O ambiente dos concertos espirituais, mais emocional e menos meditativo que o dos zikr, conduz os seus participantes a estados particulares, em que podem ser verificados fenómenos extraordinários. Isto conduziu um certo tipo de dervixes a exibir os seus poderes nas praças públicas, caminhando sobre fogo, espetando pregos num olho, despedaçando o crânio a machadadas, etc., insensibilizados e protegidos pelo seu transe hipnótico. Esta tendência afasta-se consideravelmente do sufismo verídico e é considerado como dos mais suspeitos pelos verdadeiros místicos, que, esses, sejam quais forem os efeitos secundários dos seus estados, só procuram Deus.
No princípio de pobreza e de abandono a Deus, enxertou-se, por vezes, o da vagabundagem, que dele é consequência. Os dervixes errantes (qalandar), de trajo remendado ou com adornos vistosos, ainda se encontram, mas a sua atitude, confundindo a confiança em Deus e a passividade total, tendem a fazê-las desviar dos princípios. A imensa maioria dos dervixes vive uma existência aparentemente normal no seio da sociedade, exercendo uma profissão e mantendo uma família. O voto de castidade é muito raro entre os adeptos da via e nada é feito para recalcar abusivamente o instinto sexual; apenas aqueles que não têm qualquer desejo natural vivem como celibatários; de resto, os casais de dervixes são bastante frequentes e alguns santos muito grandes foram mulheres. Só em casos excepcionais é que eles adoptam um modo de vida monacal, num convento (takya, khãnegãh ou zawiya), que muito frequentemente não é mais do que a própria morada do mestre. As estadas são então de curta duração, a não ser, como foi o caso com os mevlevi, que os adeptos vivam em verdadeiros mosteiros, semelhantes aos dos cristãos ou dos budistas. Este tipo de via, no entanto, foi sempre bastante raro e ainda o é mais nos nossos dias.
As modalidades e os usos da via podem parecer bastante simples e reduzidos, mas, se se observarem os ritos religiosos quotidianos (cinco ou três orações precedidas de abluções rituais), o jejum ritual, as orações super-rogatórias, e se a isto se acrescentar a leitura e a meditação do Corão, assim como as vigílias e as reuniões de zikr ou de samã’, tudo isto paralelamente com uma actividade profissional que constitui também uma prova diária de grande valor espiritual (nomeadamente na futuwwa, a associação de operários), facilmente se compreende que o aspirante não tem qualquer prazo na sua procura do absoluto.
O viajante espiritual (salek) conhece estados particulares, percorre etapas, utiliza veículos variados e passa por múltiplas provas. Para conhecer Deus, o salek tem de se conhecer a si mesmo e, para se conhecer, tem de dominar o seu eu imperioso (nafs ammãra). O coração é como um espelho embaciado pela ferragem das paixões. Se uma ínfima parte é poupada pela sujidade, é possível que se vislumbre um divino reflexo e que este clarão fugitivo faça nascer o desejo e o amor de Deus. À medida que nos purificamos, outros clarões aparecem, até ao ponto de o espelho do coração reflectir uma parte da luz divina. Os «toques místicos» são estados momentâneos considerados como graças sobrenaturais que vêm reconfortar ou estimular o salek; chamam-lhes hãlãt (singular, hãl), estados espirituais. Quando semelhantes estados passam a ser permanentes graças ao domínio da natureza carnal, trata-se de uma estação (maqãm), da aquisição de uma virtude transformante, de um passo definitivamente dado.
Estes graus espirituais foram numerados no fio dos séculos e os mais universais são a conversão, ou arrependimento (tawba), ou seja, a entrada na via mística (tariqa) sob uma direcção espiritual, a renúncia, ou abstinência (zuhd), que consiste em, por Deus, abandonar tudo o que não é estritamente necessário; o grau supremo deste maqãm consiste em estar desprendido do próprio desprendimento, aquilo a que se chama a «pobreza» (faqr), que é também o abandono de tudo aquilo que não é Deus, e a salvaguarda dos segredos espirituais; sabr, a paciência, é a virtude daquele que, confiando-se a Deus só depois de ter abandonado tudo, suporta um estado intermediário entre o desprendimento do mundo e a união definitiva. Implica uma grande resistência psíquica e espiritual. Certos autores nomearam uma quarentena de maqãmat mais ou menos derivados dos anteriores, de que um certo número só se situa para além do grau de reintegração em Deus, dependendo, portanto, totalmente, da vontade do Todo-Poderoso.
Transpor estas etapas implica o domínio da natureza carnal, do ego, e a aquisição de virtudes espirituais, se bem que em definitivo a finalidade esteja sempre para além das virtudes. Os meios postos em acção são principalmente os seguintes: a meditação (murãqaba), que é a sensação constante de estar sob o olhar de Deus, acompanhada do sentimento da exaltação da sua majestade; o exame de consciência (muhãsaba), combinado com a reflexão (fikr), consistindo em examinar e em distinguir o que em si mesmo é justo ou falso, bom ou mau, nos aproxima ou nos afasta de Deus. Esta ciência do coração requer a sinceridade (ikhlãs), cuja forma perfeita é a veracidade (sidq), coroação de todas as virtudes: neste estádio, todo o acto, todo o pensamento, palavra ou intenção é aprovado por Deus. No entanto, o salek, experimentando a sua própria miséria, devida, nomeadamente, às suas faltas passadas, é invadido perante Deus por um santo terror (khawf) compensado pela esperança (raja’) na sua clemência. Na estação de abandono e de reunião (tawakkul), e de satisfação e de contentamento (rizã), o iniciado reconhece quanto vem do seu Senhor como um soberano bom; está inteiramente predestinado e nada mais faz por si mesmo, experimenta uma gratidão sem limite (shukr) pelo Criador e dispensador de todo o bem, «doce ou amargo». Como diz Junayd, «o sufismo consiste em Deus te fazer morrer em ti mesmo para te ressuscitar nele».
Os estados espirituais (hãlat) mais notáveis são os do amor, do desejo, da intimidade, da proximidade, da comunhão; enfim, o anulamento e a subsistência. O amor é o princípio e o fim do encaminhamento interior e o desejo é o seu corolário. «Nada agrada mais a Deus do que o amor das suas criaturas», diz um hadis. Na intimidade, a proximidade (uns, qurb), diz-se que Deus se apresenta sem véu ao seu servidor. O estádio da comunhão é o da iluminação pelos atributos de Deus (como magistralmente o expôs Abdel Karim Jili). Mais além, é o aniquilamento (fanã’): o eu é completamente dissolvido no oceano divino, e este ponto de não regresso é seguido pela última etapa: a sobrevivência em Deus (baqa). O iniciado já não tem eu próprio e todo o seu ser reflecte unicamente a luz divina.
O conhecimento de Deus é a chave de todos os outros conhecimentos: um homem que se aproxima da perfeição descobre muitos segredos e, se agir consequentemente, pode operar todos os géneros de milagres. Mas, se realmente deseja Deus apenas por si mesmo e não para sua vantagem, não se interessará de modo algum por estes poderes do espirito e só se servirá deles com ordem vinda de cima. Os gnósticos fazem uma diferença fundamental entre estes dois tipos de milagres: os que dependem de um conhecimento esotérico das leis subtis da Natureza e aqueles que são de puras graças divinas. Estes últimos são os milagres dos profetas (mu’jizat): a ressurreição dos mortos, as pragas do Egipto, o Corão, não dependem da utilização das leis naturais, mas são como que excepções, entorses à lei cósmica, e estão apenas sob o controlo de Deus. O santo dotado de carisma (karãmat) realiza geralmente estes prodígios sem esforço, sem concentração e sem preparação. Como a sua vontade coincide com a vontade divina, só age por ordem sua, o que facilita consideravelmente as coisas. Ao contrário, o mágico, motivado pela vontade de poder, tem de desenvolver uma actividade intensa para chegar ao mesmo resultado. Os prodígios realizados pelos sufis nada têm, portanto, de comum com as práticas mágicas. Sem fazer um inventário de todos os milagres dos sufis, sentimo-nos obrigados a evocar alguns dos seus tipos.
O exemplo característico da aplicação das leis subtis da Natureza é a alquimia. Um dos elos da cadeia iniciática, Zu’lnun, o Egípcio, era muito versado nesta arte que os muçulmanos herdaram do Egipto: ele transformava, diz-se, plantas em rubis. Nos nossos dias, esta ciência existe ainda no Irão num grau muito elevado. Precisemos que a eficácia e a rapidez destes resultados são função do grau de realização do operador: para o santo perfeito, já nenhum preparativo é necessário. Um género muito difundido de milagres é aquele que retira vantagem dos espíritos elementares ou génios. Os mágicos chegam a estes resultados com uma técnica perigosa, mas, no caso do sufismo, acontece de modo inteiramente diferente. Com efeito, os génios são considerados como criaturas inferiores mas dotadas de uma alma livre e responsável. Os génios crentes seguem os profetas humanos (Salomão, Jesus e Maomé, por exemplo) e obedecem aos santos, antecipam-se aos seus desejos e servem-nos, quase sempre sem que estes tenham de se ocupar com eles; assim, o grande Hallãj era sempre escoltado, mau grado seu, por génios dedicados que realizavam todo o género de milagres (deslocações instantâneas de objectos ou de pessoas para distancias muito longas). Verosimilmente, uma grande parte dos prodígios dos sufis vêm da contribuição destes seres, quer por ordem sua, quer por ordem divina.
Uma outra categoria de milagres consiste na aquisição de certos poderes sobre o seu próprio corpo, nomeadamente em estado de êxtase. Não falaremos dos fenómenos de insensibilização ou de imunidade já antes mencionados, frequentes em todas as práticas, mas antes fenómenos de ubiquidade, de desaparecimento, de dilatação ou de redução física, etc. Bastãmi proferia, por vezes, locuções «teofanicas» quando estava em êxtase e habitado por Deus. Um dia em que os seus discípulos, por ordem sua, começaram a bater-lhe para o forçarem a calar-se, ele desapareceu e as suas pancadas só encontraram o vazio. Apareceu grande como um pardal e explicou-lhes o que se tinha passado antes de retomar a sua forma normal. O próprio Bastãmi não estava presente, tinha-se unido a Deus e apenas a sua sombra continuara na terra. Uma testemunha que, uma tarde, tinha seguido Jilani, o pólo do tempo, no seu retiro (khalwat), conta fenómenos análogos de dilatação física, diminuição, desaparição e depois reaparecimento. Ibn ‘Arabi conta que o mestre Abu Madyan foi um dia visto em setenta locais diferentes por um grande número de pessoas sob uma forma inteiramente vulgar. Os sufis admitem que os seres perfeitos têm o poder de criar corpos humanos em todos os pontos idênticos ao seu, e deles se servirem para cumprir certas missões, após o qual os aniquilam. Assim, santos atirados para masmorras bem guardadas por vezes, volatilizam-se; ou, para dar um exemplo ainda mais bem conhecido, Cristo teria deixado crucificar, depois enterrar, um duplo de si mesmo, após o qual o teria aniquilado e teria subido ao céu com o seu verdadeiro corpo, o que explica perfeitamente a ressurreição.
O problema dos milagres levanta duas reacções correntes e opostas: por um lado, aceitam-se todos os fenómenos sem discriminação alguma, sem os situar no seu contexto espiritual (quando existe um), atribuindo-lhes um valor místico apenas pelo facto de eles transcenderem uma certa ordem natural. A outra atitude é mais negativa, mas não traz consequências: é o positivismo limitado que se recusa a considerar tudo o que escape à ordem rotineira dos acontecimentos e dos factos. O que a ciência oficial, mais tarde ou mais cedo, terá de reconhecer é que o milagre é, também ele, um facto científico dependendo de uma relação de causa e efeito, com excepção dos milagres divinos (mu’jizat), os únicos que são realmente sobrenaturais. Os maiores cientistas e sábios muçulmanos sabiam isso muito bem e não há razão alguma para duvidar de um Ibn ‘Arabi (cujos conhecimentos eram tão universais quanto o seu desprendimento era absoluto) quando relata, por exemplo, uma multiplicação de pães e de mel que o saciou, a ele e a todos os seus companheiros. Também não é de duvidar de um grande espírito como ‘Attãr, que afirma que o mestre Ibn Khazruya tinha um milhar de discípulos, que eram todos capazes de caminhar sobre as águas e de voar nos ares. Se a fé levanta as montanhas, um pouco de fé basta para levantar um corpo. Lembremos, no entanto, que estes prodígios não são mais do que efeitos secundários do trabalho de purificação interior. Assim, o famoso místico e pregador Hasan Basri interrogou, surpreendido, o seu discípulo Al’Ajãmi, que se encaminhava para ele andando sobre a água: «Que significa isso? “É”, disse o outro, “que passei o meu tempo a embranquecer o meu coração, enquanto tu passavas a enegrecer o papel!”» Para o santo realizado, todas estas coisas são vaidades; quando Basri conseguiu aligeirar a sua consciência ao ponto de caminhar sobre as águas, não resistiu à vontade de fazer uma demonstração a Rabi’a, mulher perfeita entre todas. Esta voou então nos ares e convidou Basri a que fosse ao seu encontro para realizar com ela a oração ritual; depois, voltando a descer à terra, repreendeu-o: «O que fizeste, Hasan, os peixes também o fazem, e o que eu fiz, as moscas fazem-no também. O verdadeiro trabalho nada tem a ver com estes truques.» Nunca será demasiado insistir sobre este ponto.
Se os milagres do espírito e do conhecimento estão fora do alcance das críticas dos positivistas, que estão habitualmente afastados destes mistérios, suscitam, no entanto, um fascínio exagerado e apresentam um grande perigo para certos viajantes espirituais. No entanto, forçoso nos é considerá-los com toda a prudência que se impõe quando não temos critérios teológicos e teosóficos para lhes compreender os verdadeiros fundamentos. Logo, apenas evocaremos os carismas do conhecimento, da palavra divina e, principalmente, o da intercessão e do domínio, que já só depende de Deus.
O dom do conhecimento das almas é, assim parece, um dos carismas mais espalhados. Um guia verídico conhece os seus discípulos ao primeiro olhar, nem uma prega da sua alma espiritual (ruh) lhe fica escondida, e, se não fosse assim, tal mestre não estaria qualificado para guiar os seus semelhantes. Por vezes este conhecimento é extremamente preciso e concreto, e cita-se, por exemplo, o caso de um mestre que saudando um discípulo pela primeira vez lhe lembra o nome de todos os seus avós muçulmanos. Assim, um mestre podia dizer: «Não há santo passado ou presente de que Deus não me tenha dado a conhecer a existência, o nome, o parentesco e o que recebeu em partilha do Altíssimo.»
No sufismo, o milagre é um fenómeno quase quotidiano, atestando, acima de tudo, a realidade da eficácia espiritual, muitas vezes para além mesmo da morte. Jilani, por exemplo, antes mesmo da sua concepção, fez um milagre que salvou a vida da sua futura mãe, e outros fizeram milagres no ventre materno. Jilani afirmou que em toda a época levaria socorro a todos os discípulos da sua tarique, e numerosos milagres foram realizados e continuam a sê-lo nos locais das peregrinações e nos túmulos dos santos. Apesar de tudo, nunca um sufi será reconhecido como mestre só pelo poder de fazer milagres.
O seu poder será guiar as almas para a perfeição, porque os mestres de tal craveira não vêm à terra para curar leprosos e ensinar a levitação…
O maior de todos os milagres não é o que transforma a matéria mas o que transforma as almas: é o milagre do verbo divino, da palavra criadora. Quando um descrente encontra um mestre e por uma palavra deste renuncie à sua vida dissoluta, abraça a via e consagra-se ao serviço de Deus, trata-se de um milagre do Espírito que nenhuma força espiritual humana, por mais subtil que seja, comanda. Certos mestres, como Junayd, tinham recebido o dom do verbo em grau eminente. Um dia em que falava aos seus discípulos, dezoito morreram de amor e vinte e dois desmaiaram. É que, também neste caso, Deus falava pela sua boca e nada de humano maculava a sua palavra: «Durante trinta anos, Deus falou a Junayd pela língua de Junayd, não estando Junayd ali de modo algum e não desconfiando os homens de nada.»
Existe milagre ainda mais alto? Certos sufis dizem que sim. Este milagre é o da pura presença divina, do reflexo perfeito da essência absoluta no coração do pólo do tempo (qutb). Simplesmente, esse milagre está reservado àqueles que sabem ver e que, penetrando no santo dos santos, estão autorizados a ver. Esse milagre é tal que este mesmo ser é um homem de carne, e é tal o seu poder que pode à sua vontade dissimular a sua condição sublime em toda a criatura: se o homem tem necessidade de Deus, Deus, esse, não tem necessidade de ninguém.
Segundo parece, os milagres são hoje menos frequentes entre os dervixes do que no passado. Certos mestres dizem que daqui em diante é a ciência que realiza os milagres, que espanta as multidões, e que eles já não têm a missão de impressionar os homens por meios pueris para os conduzir à verdadeira fé. Aquele que se diverte a fazer milagres esgota toda a sua capacidade espiritual em vãos divertimentos e afasta-se de Deus. O mesmo acontece com aquele que procura sistematicamente as visões e os êxtases, que procura conhecer o futuro ou mergulha nas ciências ocultas, que frequenta assiduamente almas, anjos ou génios. Todas estas maravilhas são armadilhas perigosas, bem mais ainda do que as armadilhas materiais. São para alguns a altura de uma queda assustadora ou, pelo menos, de uma estagnação lamentável de onde ninguém os pode salvar. Nunca se lembrará suficientemente de que a Vida não é um jogo onde se procure o próprio prazer, mesmo espiritual, mas um processo implacável cumprido não para aperfeiçoar a sua natureza «criatural» mas para fazer do seu coração um templo da divindade, no qual, como diz Rumi, «não haja lugar para dois eus».
Por terem deixado subsistir uma parcela do eu, certos sufis, demasiado cedo considerados como mestres, pouco a pouco desviaram-se da via, arrastando atrás de si os seus discípulos; os seus sucessores à cabeça das ordens acumularam erro sobre erro, mantendo um fundo tradicional, em geral muito estável, compreendendo um conjunto de ritos e de práticas, de símbolos notáveis em si, mas insuficientes para substituir um verdadeiro influxo espiritual de origem sobrenatural. Em compensação, quando este influxo existe, está a lidar-se com um mestre designado por Deus e não pelo seu antecessor ou pelos seus discípulos. Só a esse nível existe a via, sejam quais forem os meios postos em acção e as formas que possam tomar.
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