Jean During
Jean During Do Instituto Francês de Teerão.
A experiência espiritual do Profeta constitui a referência e norma da mística islâmica. Maomé, o Enviado, portador da revelação do Espírito Santo, é também «muçulmano» no sentido original do termo: totalmente submetido a Deus. Entre todos os profetas e emissários divinos, ele é o adorador por excelência, o amante ciumento do seu Deus, obcecado pela contemplação do Único. Na sua missão religiosa, combateu a idolatria e impôs a lei do Deus Uno, criador de todas as coisas, que assegura a manutenção da criação, salva a cada instante do não ser pela sua misericórdia. Na sua missão esotérica, combate a idolatria interior, culpada de associar qualquer coisa ao amor incondicional de Deus. Efectivamente, o homem foi criado para adorar o seu Senhor, não só no culto e no rito mas bem mais no templo do coração, onde não há lugar para outra coisa que não seja o amante e o Amado. Esta presença divina atinge a sua plenitude quando a individualidade se anula para só subsistir em Deus e por Deus.
Em virtude de um pacto paternal, cada homem está ligado à essência divina, e a sua alma é uma parcela do «expirar do Clemente», do «sopro de Deus» (nafas al-rehman). A mística muçulmana é a resposta à questão colocada a todo o homem: «Não sou eu o vosso Senhor» (alastu bi rabbikum)? Todos os níveis da religião, da mística e, de um outro lado, da descrença, da rebelião, são determinadas pela natureza da nossa resposta, pela intensidade do nosso «re-conhecimento», que é recordação, gratidão e submissão. Quanto ao resto, pertence a Deus revelá-lo ao homem; trata-se de graças sobrenaturais que coroam o esforço sobre-humano do místico para a sua própria perfeição: conhecimento, amor, intimidade, carismas, revelações… «Não sou eu o vosso Senhor?»; toda a criação, na sua harmonia e na sua sabedoria, coloca esta questão a quem saiba entendê-la. E para que ninguém possa furtar-se a esta interrogação primordial, Deus envia para a Terra os seus profetas, os seus santos, os seus enviados que, detendo ao mesmo tempo a pergunta e a resposta, chamam e guiam os seus semelhantes na via da Verdade. Depois da criação de Adão, primeiro profeta e primeiro homem, cento e oitenta mil profetas de categorias diversas se seguiram na Terra. Os mais eminentes são aqueles que foram portadores de uma lei ao mesmo tempo esotérica e exotérica: Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus e Maomé. A profecia de Maomé constitui, portanto, o terceiro ramo da profecia abraâmica, a continuação da mensagem de Cristo e o acabamento do ciclo da profecia legislativa (risala). Não há mais profeta e nova religião depois do islão, mas o mundo nunca está vazio de enviados divinos, cuja missão não depende da lei religiosa (skar’) mas da via mística. Todos os enviados são portadores de verdades esotéricas, mas apenas alguns foram encarregados de fundar uma religião, como foi o caso de Maomé. Se bem que o exterior seja também um reflexo do interior, reteremos o aspecto interior da experiência do Profeta.
Antes de receber a Revelação, Maomé tem uma existência aparentemente normal. Perfeitamente integrado na sociedade comerciante de Meca, de modo algum tem consciência do destino excepcional que lhe está reservado. Até por volta dos quarenta anos, nada o distingue dos seus semelhantes, a não ser uma certa sabedoria, um sentido moral mais elevado e um gosto cada vez mais pronunciado pela meditação. Sem dúvida era considerado como um hanif, um daqueles místicos árabes que, desviando-se do politeísmo ancestral, sem, no entanto, aderir a uma religião particular, eram, no entanto, assombrados por um sentimento de presença divina puro de todo o culto. Maomé é cada vez mais atraído para este estado, a ponto de por vezes se julgar tentado pelos espíritos, ou habitado por um génio. No deserto, onde procura fugir um momento à vida trivial da burguesia mecaense, distingue vozes, as pedras saúdam-no, as arvores estendem os ramos à sua passagem. Todos os anos, durante o mês sagrado, retira-se para uma gruta, prática que não era nova, pois que já seu avô ali o precedera. A única ascese dos politeístas árabes era o retiro e principalmente o jejum do Ramadão (anterior ao islão). É possível que elementos mais específicos de mortificações tenham sido retiradas dos ascetas cristãos, mas, no que se refere a Maomé, parece mais que tenha seguido um impulso sobrenatural, motivado pela sua sede de absoluto, do que uma regra bem definida. No entanto, não está excluído que alguns restos de tradições ascéticas tenham subsistido entre os Árabes por intermédio destes misteriosos hanifs .
Os espiritualistas muçulmanos admitem que Maomé foi iniciado no dom da profecia por seu tio Abu Tãlib, que, sem ser judeu ou cristão, era, no entanto, um elo na cadeia iniciática, vindo de Adão por intermédio de todos os profetas bíblicos (incluindo o próprio Cristo, iniciado por João Baptista). No que se refere ao conteúdo e à natureza desta iniciação, não sabemos absolutamente nada, mas, sem dúvida alguma, ela é levada à sua perfeição, transcendida pela revelação profética conferida pelo e spírito Santo na pessoa do arcanjo Gabriel. Nos seus retiros espirituais, Maomé praticava esta devoção intensa (tahanut), que lhe presta a tradição? Neste caso, a quem dedicava a sua oração, pois que ainda não conhecia o Deus único? Sem dúvida o seu coração conhecia já o que o seu espírito ignorava ainda, e esta meditação era acompanhada então de visões cada vez mais claras, de sinais cada vez mais evidentes. O que é preciso compreender bem em tudo isto, é que, apesar de uma aparente preparação, a Revelação não foi a «consequência» ou a «conclusão» de um processo. A visão e as mensagens divinas são graças sobrenaturais, que não dependem de nenhuma volição humana, e, a este nível, nenhuma técnica poderia provocá-las. O esoterismo das religiões reveladas ensina a predestinação total dos profetas, dos enviados e dos iniciados; estes seres nada fazem por si mesmos e, fora da graça divina, não há solução de continuidade entre as práticas espirituais e os seus efeitos sobre a alma. Logo é possível dizer que não foi por ter praticado a meditação que Maomé se tornou profeta, mas que era por ser profeta que mergulhou na devoção intensa.
A primeira visão Ibn Ishaq conta a primeira visão: «Eu saí da caverna. Mal cheguei ao meio da montanha, ouvi uma voz vinda da montanha, que dizia: “Ó Maomé, tu és o apóstolo de Alá e eu sou Gabriel.” Levantei a cabeça para o céu para olhar, e eis que Gabriel estava lá, sob a figura de um homem unindo os calcanhares no horizonte do céu, e me disse mais uma vez: “Ó Maomé, tu és o apóstolo de Alá e eu sou Gabriel.” Parei, olhando-o sem poder avançar ou recuar; pus-me então a desviar o rosto para os outros cantos do horizonte, mas não via nenhum canto do céu sem ver o anjo na mesma atitude: fiquei assim de pé, sem poder avançar, nem voltar atrás…»
De facto, o Profeta não identificou ainda o anjo. É um dos seus parentes, versado nas santas escrituras, que lhe revela a sua natureza: é Gabriel, o Logos, o E spírito Santo, a primeira entidade cósmica; foi ele quem revelou a Lei a Moisés e habitou a pessoa de Jesus Cristo. Outros iniciados antes dele e depois dele foram visitados pelo Espírito, mas pela primeira vez, um Livro vai ser ditado inteiramente, pelo Verbo de Deus, no curso de vinte anos de revelações. O anjo aparece-lhe um dia, trazendo uma peça de tecido luminoso, coberto de sinais. Ordena-lhe: «Recita!» «Eu não posso recitar», responde Maomé. Então o anjo agarra-o, aperta-o violentamente, até que ele cai por terra. «Recita!», repete a voz. «Não posso recitar.» Novamente o anjo por pouco não o sufoca. Uma terceira vez ordena «Recita!», e a Maomé esgotado, o anjo revela: «Recita em nome do teu Senhor que criou. Que criou o homem de sangue coagulado. Recita, porque o teu Senhor é o mais generoso. Foi ele quem revelou ao homem a ciência do Calamo. Ele ensinou ao homem o que o homem não sabia.»
Não obstante a amplitude e a intensidade da visão, Maomé é invadido mais tarde pela dúvida. Não teria sido muito simplesmente presa de um génio, comunicando-lhe aqueles versos como a um vulgar poeta? Estes feiticeiros das palavras que foram os primeiros poetas árabes recebiam, diz-se, a sua inspiração, e o seu génio por génios, que tomavam posse do seu espírito. Precisemos que numerosos viajantes espirituais, em todas as vias, se deixaram possuir por «espíritos tentadores» que lhes comunicaram pretensas missões proféticas ou verdades esotéricas. Esta armadilha terrível é bem conhecida dos místicos (a tentação de Santo António, por exemplo), e é um sinal da sinceridade de Maomé pôr em dúvida a sua experiência. Mas, quando da terceira revelação, o anjo confirma-lhe a sua craveira e a sua missão. Algum tempo depois sobrevem uma dura prova, que durará dois anos. Foi então que adquiriu a plena certeza da sua missão, o anjo já não o visita e não ouve mais a mensagem celeste. Está marcado a tal ponto que não deseja mais, para pôr termo à separação, do que unir-se a Deus na morte. Se o Profeta tivesse apurado uma técnica permitindo-lhe aceder à Revelação, é evidente que não teria conhecido esta prova. Enfim, três ou quatro anos depois da primeira aparição chega a ordem da missão pública. Até ao último dia, o anjo lhe comunicará mensagens divinas que, agrupadas e classificadas uma trintena de anos mais tarde, constituirão o Livro por excelência: o Corão.
O Corão é considerado como a expressão do Verbo de Deus, do Calamo supremo, ao mesmo título das Escrituras dos cristãos e dos judeus. Todavia, enquanto estes últimos interpretaram a mensagem, o Corão conservou a sua pureza original: nem uma palavra, segundo parece, foi acrescentada ou cortada. Ler o Corão é articular as mesmas palavras que foram ditadas pelo anjo, pronunciadas depois pelo Profeta em estado de êxtase. Isto basta para conferir às próprias palavras um poder espiritual, utilizado tanto pelos místicos como pelos m ágicos ou curandeiros. Este poder não está ligado ao sentido do texto, pois que o efeito é o mesmo, compreendam-no ou não, enquanto uma tradução do Corão, pelo contrário, é totalmente desprovida de eficácia. A leitura do Livro, assim como a sua exegese, é uma das principais actividades dos espirituais muçulmanos. O supremo grau, nesta via, é meditar a revelação ao ponto de a ouvir da boca do Espírito de Deus como o Profeta a ouviu. Observemos a este propósito que a pessoa de Maomé é como que apagada pela sua própria missão. O Corão não é a obra do Profeta, mas o Livro de Alá; Maomé não encarna a Verdade, como Cristo, por exemplo, mas transmite esta Verdade no mais santo de todos os livros, contendo as leis religiosas e, sob forma alusiva, as leis da vida esotérica. Emprestam-se três sentidos diferentes a cada versículo do Corão, figurando, sem dúvida, as três etapas da via espiritual: a lei religiosa esotérica (sharia’), a via espiritual mística (tariqa), a Verdade última (haqiqa) .
Apesar da sua origem transcendente, o desenrolar da revelação segue de perto os acontecimentos aos quais assiste o Profeta. Nas situações críticas, alguns versículos trazem uma solução ou um comentário decisivo. No começo, as revelações são breves e concisas, mas, progressivamente, como se o Profeta se habituasse a suportar mais longas mensagens, capítulos inteiros (suratas) são-lhe ditados. As revelações do começo da missão (colocadas para o final do Livro) são mais fulgurantes e têm um sentido mais vasto, enquanto as últimas (colocadas no começo) se referem mais às leis e prescrições rituais do islão. Tem sido perguntado se não havia aí o indício de uma certa tendência do Profeta a acomodar, a trazer mesmo novos versículos para fazer face a situações embaraçantes ou impor a sua vontade. De facto, Maomé sempre distinguiu cuidadosamente a sua própria palavra da do anjo e não havia ambiguidade para ninguém sobre este assunto.
O fenómeno da revelação que se operava nele era de uma violência pouco comum. Quando sentia vir a revelação, escondia a face, e o Verbo abatia-o; suava em gotas grossas, como se estivesse oprimido por um peso insuportável. Um dia em que tinha adormecido, com a cabeça apoiando-se na coxa de um discípulo, uma revelação o atingiu durante o sono e a cabeça ficou tão pesada naquele momento que o discípulo sentiu a perna a ponto de ser esmagada. De uma outra vez, isso passou-se enquanto viajava no dorso do camelo: o peso do Verbo foi tão esmagador que o animal vergou e se abateu.
A maneira como percebia as mensagens não nos é bem conhecida, tanto menos quanto aos casos de profecia são bastante raros entre os santos e os místicos. Maomé explicou um dia o fenómeno nestes termos: «Por vezes, aquilo chega-me como o ressoar de um sino, e é para mim o mais duro; então aquilo deixa-me e eu compreendi o que me disse. Outras vezes, o anjo toma para mim a forma de um homem, dirige-se a mim, e eu compreendo o que diz.» Uma outra vez, explicou: «Ouço um barulho e sou como que atingido por uma grande pancada. Nunca a revelação vem sem que eu tenha a impressão de que me arranca a alma.» Ou ainda: «A revelação vem-me de duas maneiras: ou Gabriel me visita e me fala como um homem a outro homem, mas o que me diz desvanece-se, ou então vem até mim com estrondo, com um som de sino que me perturba. O que me revela assim não se desvanece.» Parece que, na maior parte dos casos, o Profeta não entende directamente as palavras, que só transmite depois da revelação. Acontece frequentemente que Deus fale ao Enviado por uma sugestão, uma comunicação independente de toda a percepção verbal. Este modo é chamado locução interior, do género intelectual mais que imaginativo e não é acompanhado de nenhuma visão nem representação mental. Efectivamente, no começo, o próprio Maomé ignorava a natureza, tanto quanto a forma desta comunicação, que chamava simplesmente Espírito. Depois da visita do Espírito, o apóstolo emerge do seu êxtase e as palavras da revelação saem da sua boca sem hesitação, como pérolas que tivesse colhido no fundo do oceano divino. Este modo de revelação, bem como um outro, são-nos contados no Corão: «Não foi dado ao homem que Alá lhe fale directamente; fá-lo simplesmente por inspiração ou atrás de um véu», de modo que não se trata também aqui de uma visão, mas de uma audição clara e distinta, do tipo daquela que é atribuída na Bíblia aos profetas e que se chama, por vezes, «locução imaginária» ou mesmo «locução exterior». Enfim, acontece que as locuções sejam de ordem imaginária (ou melhor, «imaginais»), acompanhadas da visita intelectual ou «imaginal» do anjo de Deus.
Para além da experiência puramente profética, estamos muito mal informados sobre os aspectos místicos do seu ensinamento, ao ponto de alguns não verem em Maomé mais do que um legislador religioso. Mas, se se considerarem as interpretações místicas e esotéricas dos hadis (tradição oral e ditos do Profeta) e do Corão, é-se forçado a concluir que a sua função legislativa não era se não a face exotérica da sua missão. Maomé não foi apenas o depositário passivo do Verbo divino, mas percorreu a via da perfeição até às últimas etapas que o conduziram a um grau de intimidade, de proximidade com Deus, que as tradições avaliam pela distancia de «dois comprimentos de arco ou mesmo menos». Se bem que ele próprio tivesse falado muito pouco abertamente dos seus êxtases, as tradições descreveram em pormenor uma das suas experiências mais altas, a do mi’rãj, que selou definitivamente a sua aliança com Deus e confirmou a sua classe entre os outros enviados.
O Profeta dormia, perto da Caaba, ou noutro lado, quando o arcanjo Gabriel veio procurá-lo com uma cavalgadura com cabeça de mulher, rápida como o relâmpago, que o conduziu através de numerosas visões até Jerusalém, à Jerusalém celeste, onde dirigia a oração na companhia dos grandes profetas. Depois acedeu ao primeiro céu, guardado por Adão. Ali, viu Jesus e o seu apóstolo São João. Depois, sucessivamente, José, Enoch, Aarão, Moisés e, enfim, no sétimo céu, Abraão. O Profeta elevou-se tão alto que ouviu o rangido das asas dos anjos inscrevendo as acções dos homens e o destino do Mundo na Tábua Guardada. Certas tradições descrevem em pormenor o que o Profeta viu em cada um dos céus, cuja distancia se percorre em quinhentos anos. Um deles era de aço, outro de pedras preciosas. Um anjo estava ali, cujos olhos estavam espaçados setenta mil dias; um outro céu era de ouro, e o anjo da cólera ali reinava; o seu rosto era de cobre vermelho, rodeado de fogo; mais acima estava um anjo de fogo e de gelo. No sétimo céu, Maomé viu um anjo de setenta mil cabeças, cada cabeça tinha setenta mil bocas, cada boca falava setenta mil línguas diferentes para celebrar os louvores ao Todo-Poderoso. O Profeta viu muitas outras coisas ainda, até ao momento em que o arcanjo o deixou sozinho, pois já não tinha o direito de continuar. No entanto, indicou-lhe o caminho. Ao cabo do céu, nos confins do paraíso, ele atingiu o Lótus do Limite, cujo perfume embalsama todo o Universo. Ali, Maomé conservou-se «à distancia de dois arcos ou mesmo mais perto» de Deus, de quem sentiu a presença inefável.
Um hadis precisa que Deus, velado por setenta véus, dirigiu noventa mil palavras impregnadas de benevolência pelo Profeta. Depois foi trazido à terra na sua montada, atravessou num relâmpago todos os mundos desde o Lótus do Limite até ao local onde o arcanjo o procurara. Diz-se que ao partir para os céus derrubou um copo de água; quando a taça tocou no solo, já ele voltara da sua viagem celeste.
Reparemos que o tema da ascensão celeste é muito clássico e se encontra nas formas mais diversas de espiritualidade, incluindo as religiões arcaicas de tipo xamânico. A descida na Merkaba e a mística do Trono do judaísmo evocam a tal ponto o mi’rãj que se justifica a pergunta se não houve uma influência judaica na formação deste hadis. A diferença essencial entre a ascensão celeste de Maomé e as outras experiências deste tipo está, em primeiro lugar, que ela não foi procurada, preparada por técnicas apropriadas, mas sobreveio como uma graça sobrenatural no convite de Gabriel. É principalmente a última fase da viagem, a chegada ao Lótus do Limite e a conversa com Deus que distingue radicalmente esta experiência de todas as tentativas deste género. Nas outras tradições místicas, a viagem exige muitas vezes uma preparação intensa de várias semanas e o extático corre um grande perigo, do qual se protege por meio de fórmulas mágicas. Quanto muito consegue insinuar-se furtivamente de um céu a outro, onde a sua presença é tolerada na medida do seu grau de sinceridade; se chega ao termo da sua ascensão através dos sete céus, pode contemplar o trono divino e o pleroma das criaturas celestes, mas nunca se trata de efusão, de diálogo íntimo com a divindade, nunca é convidado e tratado como hóspede de prestigio, como foi o caso com Maomé.
Uma particularidade notável do Profeta é, não obstante a sua craveira e a sua missão, a dimensão humana que o caracteriza. A sua vida é um ensinamento para todo o homem, simples crente ou santo, conforme com a palavra do Corão: «Na verdade, existe um exemplo para vós no Enviado de Alá.» Maomé está justamente no meio, entre o ascetismo e o liberalismo, posição afastada dos excessos, e que será adoptada pela maior parte dos espirituais muçulmanos. Todo o seu comportamento respira naturalidade, ao ponto de alguns dos seus contemporâneos, cegos pelas suas ilusões, esperarem a verdade de um anjo e a recusarem da parte de um homem que «come, bebe e passeia pelos souks». A tradição traz-nos, no entanto, histórias edificantes sobre a austeridade e o desprendimento do seu modo de vida. Durante meses e meses, ele não tinha fogo nem luz em sua casa, só se alimentava de pão e de tâmaras, e quando a fome era demasiado dolorosa punha uma pedra em cima do estômago. Parece, no entanto, que além do jejum ritual do Ramadão esta ascese lhe era imposta pelas circunstancias e que não a procurava sistematicamente. Em compensação, a sua pobreza era desejada e não tinha mais do que o mínimo necessário; se bem que no final da sua vida fosse um grande chefe político, viveu sempre com a sobriedade de um beduíno.
Em contrapartida, de acordo com o exemplo do Profeta, nenhuma restrição abrange, no islão, o domínio das relações sexuais, nos limites das condições matrimoniais, bem entendido. O casamento e o divórcio eram bastante fáceis no tempo do Profeta e a poligamia (que tendia cada vez mais a desaparecer) era corrente. Ele trouxe algumas modificações a estas leis, para vantagem da mulher, que foi dotada de um estatuto bem mais digno que antes do islão. Do ponto de vista sexual, a «liberdade de expressão» é o costume e não se vê pecado neste acto natural. Em troca, o adultério, bem como todas as perversões sexuais, são severamente proscritas e foram, por vezes, punidas com a morte. Não obstante os seus numerosos casamentos, ditados frequentemente pelas necessidades políticas, Maomé não praticou uma espécie de ascese sexual, de tipo tântrico ou taóico, prática que é totalmente rejeitada pelo islão; bem pelo contrário, a continência não é encorajada, pois vai contrariar a lei natural. Se as relações sexuais são livres e lícitas, não devem ser motivo para nos desviarmos de Deus e perder o estado de pureza ritual; eis a razão por que o Profeta preconizou orações, invocações especiais, precedendo e seguindo o acto carnal, bem como a ablução total após o seu cumprimento.
As regras de vida e as condutas do Profeta inspiraram, desde o começo do islão, os muçulmanos mais zelosos. Aos exemplos de sabedoria, de desprendimento e de devoção juntavam-se versículos do Corão cujo alcance místico não cessou de ser experimentado. A noção de abandono a Deus (tawakkul) sobressai claramente nos versículos seguintes: «Se eles se desviam de ti, diz: “Deus me basta. Não há Deus como Ele. A Ele me confiei. É Ele o Senhor do imenso império.”» Acerca da experiência iluminadora, dos carismas e dos poderes, poderiam citar-se as passagens respeitantes aos outros enviados: «Demos a Moisés e a Aarão a Distinção… [A David e a Salomão] concedemos a sabedoria e a ciência. Submetemos a David as montanhas para celebrar os nossos louvores e também as aves. Nós fizemos tudo isso… E submetemos a Salomão o vento soprando em tempestade… A Jesus demos o Evangelho e pusemos nos corações daqueles que o seguiram a extrema benevolência e a compaixão.» Quanto à experiência iluminadora, os versos seguintes atestam-no para Moisés e para Maomé: «E quando Moisés veio ao nosso encontro, e que seu Senhor lhe falou, Moisés disse: “Senhor, mostra-Te a mim para que te possa ver!” Deus disse: “Tu não podes ver-me, mas olha para a montanha, e se ela continuar imóvel no seu lugar, tu me verás.” Mas quando o seu Senhor apareceu sobre a montanha, fê-la em poeira e Moisés caiu no solo desmaiado…» (7,139). Moisés não teve a visão divina, porque, não obstante a sua posição, não estava ainda preparado para lhe suportar o choque e desmaiou. Maomé, esse, teve acesso a uma visão mais alta: «Foi o poderoso em Força quem o instruiu!» É, portanto, a experiência mais pura da divindade, o diálogo extático mas sóbrio com o Amado que Maomé deixa em legado à fina flor da comunidade muçulmana. No restante, não realizou milagre especialmente notável além do Corão, que é o seu verdadeiro milagre, o sinal inimitável da Palavra suprema. Não instaurou método explícito que não seja o da lei religiosa, das obrigações, e das orações rituais. Pela natureza da sua missão, os enviados são dotados de graças divinas em comparação com as quais toda a tentativa de formalização, de sistematização, não conduziria senão a uma paródia iniciática. Em vida do Profeta, quando o seu influxo espiritual estava no summum da sua eficiência, a via esotérica não se distinguia aparentemente da via exotérica. Uns séculos mais tarde, ao contrário, as ordens contemplativas, as confrarias, multiplicaram-se e inventaram novas regras para combater a alma carnal, desenvolver forças psíquicas ou receber eflúvios espirituais.
A ortodoxia muçulmana acentua a revelação e a pessoa do Profeta como uma referência espiritual única, um momento privilegiado da história profética pertencendo ao passado, mas perdurando, nomeadamente, através das tradições orais e do Corão. Para os místicos, é bem diferente: o influxo espiritual que animava o Profeta habitou igualmente alguns discípulos eleitos, que se tornaram de algum modo os depositários dos segredos divinos. De Adão a Maomé estabeleceu-se uma cadeia espiritual Estes «segredos» (asrar) não são dissimulados ao profano, mas estão simplesmente fora do alcance das almas vulgares pela subtileza da sua natureza. É a este fundo indizível que chamamos, na falta de termo apropriado, o «es oterismo islâmico», o aspecto interior (bãtin), oposto ao exterior (zãhir), ou antes escondido neste último. Assim, um mesmo versículo do Corão tem um sentido aparente e presta-se a uma ou mesmo a várias interpretações esotéricas, que, no entanto, não se excluem reciprocamente. Do mesmo modo, atrás da aparência religiosa e política de Maomé, os místicos descobriram o Adão primordial antes da queda, o homem perfeito em todo o seu esplendor, tal como Deus o criou à sua imagem e animou com o seu talento. Esta «luz maomediana» (nur-e muhammadi) habita todo o ser humano chegado à sua própria perfeição, e é através de tais criaturas que se transmite, que se manteve desde a criação de Adão aos nossos dias. Estes seres de excepção são os garantes, os testemunhos (hujjat, shãhed), os amigos (wali) de Deus, os profetas conhecidos ou os enviados desconhecidos, sem os quais a terra, privada de representantes de Deus, de pólo (qutb, qaws) e de eixo, pararia de girar.
Esta interpretação é essencialmente a dos sufis, dos espirituais muçulmanos, e difere da do dogma oficial, que se limita simplesmente a Maomé, último elo da cadeia profética. Sobre este assunto, aliás, nos nosso dias, tem de se distinguir o ponto de vista do sunismo do do «shi’ismo». Para os Xiitas, a autoridade espiritual, abaixo de Maomé, pertencia a ‘Ali, seu mais próximo discípulo e parente, e transmitiu-se até à décima segunda geração da sua descendência. Os doze imãs representam o ciclo da santidade absoluta, da amizade divina, da perfeição mais alta, a ponto de o primeiro imã, ‘Ali, ser considerado pelos extremistas como o reflexo da própria essência divina, teofania suprema superior ao Profeta. Sem irem tão longe, os sufis sunitas reconhecem-no muitas vezes como o primeiro elo de cadeia espiritual que os liga ao Profeta; além disso, a quase totalidade das vias sufis (tariqa) convergem para Ja’afar Sadeq, o sexto imã ou ‘Ali Rezã, o oitavo.
Depois dos p rofetas, ‘Ali e alguns outros discípulos iniciados foram considerados como géneros de guias, de mestres para os crentes mais zelosos. Junto deles aprofundavam o sentido da religião e, se eram aptos para recolher esta «luz maomediana», se atingiam a classe supra-angélica do homem perfeito (insãn-al-kãmi1), guiavam, por sua vez, alguns discípulos qualificados. Após algumas gerações, os mestres tomaram-se muito numerosos e, pelo século X, distinguiam-se numerosas cadeias de transmissão, partindo de antepassados comuns, até do próprio Profeta. Ainda nos nossos dias, todo o dervixe se sente ligado a Maomé, depois a Deus, por intermédio de uma longa descendência de mestres.
Na sua origem, os sufis foram aqueles que se vestiam com um comprido trajo de lã (suf) em sinal de renúncia. Percorriam a via (tari qa) e frequentavam mestres sem pertencerem a uma congregação particular. Pouco a pouco, o termo «sufismo» (tasawwuf) ganhou um sentido cada vez mais definido à medida que o fenómeno se precisava: do mesmo modo, a palavra «via» (tariqa) foi identificada pouco a pouco com o conceito de escola esotérica particular. Foi a partir mais ou menos do século IX que os sufis começaram a formar grupos mais ou menos distintos, reunidos em volta de um mestre. Muitas vezes, este mestre designava um sucessor para, por sua vez, guiar discípulos, e o seu ensinamento transmitia-se durante séculos de mestre (murshid) a alunos (murid). Por vezes, dois ou vários mestres da mesma confraria ensinavam ao mesmo tempo, e a cadeia de transmissão cindia-se e dava numerosas ramificações. É assim possível enumerar nos nossos dias mais de uma centena de ramos ligados a um tronco único por gerações de mestres espirituais. Os ramos mais importantes são os seguintes: qãdirya, difundida por todo o mundo muçulmano, shãzilya na África do Norte principalmente, maqshbandya na Ásia Central, Turquia, Índia, mevleviya e bektashiya na Turquia, shattarya, suhrawardya e tshishtya na Índia, Paquistão e Afeganistão.
Para o muçulmano, a melhor via de salvação está na imitação de Maomé, fundada sobre a sira, as narrativas e episódios da sua vida exemplar, e nas suas palavras (hadis), de que foram registadas mais de dez mil (na sua maioria apócrifas) respeitando todos os aspectos da vida religiosa, da moral e da conduta quotidiana. Para o místico, o Profeta é, acima de tudo, o modelo da experiência divina mais alta e é seguindo as suas pisadas que realiza o caminho da Perfeição.
Como profeta recebendo directamente as palavras divinas, parece impossível seguir, imitar Maomé, pois que o dom da revelação é exclusivamente sobrenatural e não pode ser adquirido. No entanto, o sufismo conheceu casos únicos de inspirações divinas de tipo auditivo e, excepcionalmente, visual e escriturário, que se aparentam estreitamente com a inspiração profética. A diferença essencial reside no facto de as mensagens assim recolhidas não terem o alcance universal (ao mesmo tempo esotérico e exotérico) do Corão, mas conterem em si um sentido unicamente místico. É preciso mencionar o caso notável de Ibn ‘Arabi (século XII), considerado como o maior pensador do islão e como o «selo da santidade»: as suas obras místicas, avaliadas em mais de quinhentas, foram escritas sob o efeito de uma inspiração sobrenatural. A famosa Fusus al-hikam (A Sabedoria dos Profetas), foi-lhe ditada de um jacto pelo Profeta Maomé em pessoa. Os milhares de páginas das revelações mecaenses (Futuhat al-Makkya), súmula esotérica do sufismo, caíram sobre ele no espaço de um segundo quando, no decorrer de uma circum-ambulação ritual, o seu olhar se cruzou com o de uma jovem, que lhe surgiu então como o reflexo encarnado da sabedoria eterna. Citemos igualmente a obra poética de Mawlãnã Jalãleddin
Rumi, o Masnavi, chamado muito simplesmente o Corão Persa, inteiramente ditado em estado de êxtase a discípulos. A níveis diversos, um grande número de espirituais receberam, nas pisadas de Maomé, este carisma de inspiração literária que parece ser um privilégio do islão.
O dom da palavra tem sido, por vezes, o milagre de certos mestres: com algumas palavras simples agitavam o seu auditório, provocavam êxtases ou suscitavam conversões. É que, contrariamente às vias silenciosas e imóveis do Extremo Oriente, o islão acentua o poder criativo do verbo divino; se bem que preconizando a serenidade, ele não se funda numa metafísica do «repouso do Ser», mas antes do transbordamento, na sua clemência (rahmat), na sua efusão, de que a multidão de atributos, de nomes e de qualidades divinas lhe manifesta os aspectos.
Precisemos que este tipo de inspirações sobrenaturais nada tem de comum com um fenómeno, frequente nos transes, consistindo em balbuceios ininteligíveis, chamado, por vezes, «falar em língua». Bem pelo contrário, a língua dos inspiradores, nomeadamente o árabe e o persa, representa sempre um cume poético e literário inigualável.
Esta língua é regida por uma ciência divina, cujo estudo e a prática permitem decifrar os sentidos múltiplos e complementares de uma revelação. Maomé tinha, sem dúvida, conhecimento desta ciência suprema, o que lhe dava a chave das interpretações esotéricas das palavras do anjo. Uma ciência das letras foi igualmente praticada pela Cabala hebraica como uma técnica mágico-extática; no islão, tem um valor mais especulativo e interpretativo, se bem que sirva igualmente à magia branca. Há vários séculos que esta ciência foi abandonada e já não desempenha função nas práticas espirituais.
O verdadeiro legado de um Enviado e a persistência da sua influência espiritual no tempo e no espaço. Em sua vida, já Maomé, atraíra a si alguns discípulos por via invisível. Da mesma maneira, guiava, ignorando-o este, um santo iemenita de nome Uways, a quem mandou dar, depois da sua morte, o seu próprio manto, sinal de investidura espiritual. Maomé recebeu de Deus um privilégio para o seu povo: nunca Satã lhe tomaria a imagem, ou seja, que toda a visão em que ele próprio aparecesse seria uma visão verídica. Esta assistência permanente é ainda testemunhada nos nossos dias por numerosas pessoas que, sem serem forçosamente santos ou visionários, foram dirigidas ou aconselhadas pelo Profeta em pessoa. No sufismo, a possibilidade de uma iniciação na ausência de um mestre vivo está sempre aberta, seja qual for o privilégio dos muitos grandes santos. Abu Yazid Bastãmi, figura exemplar do sufismo, foi iniciado por via invisível pelo sexto imã Já ‘afar Sãdeq. Outros, como Termezi, Ibn Adham, Al-Kãttãni, etc., foram iniciados pelo profeta Khizr, identificado, por vezes, como um avatar do a njo Gabriel, cumprindo a sua missão em toda a época e em todo o lugar. Ainda nos nossos dias, aquele que aspira a uma direcção espiritual pode fazer uma peregrinação ao túmulo do imã Rezã em Mashhad (Irão), que o dirige então para um mestre. Quanto à visão do anjo Gabriel, ela não é rara na história do sufismo, seja qual for a forma sob que este se manifeste.
A ascensão celeste do tipo do mi’rãj é menos frequente, assim parece, ou, em todo o caso, efectua-se de maneira diferente, mas a exploração do mundo intermediário (barzakh), destes espaços maravilhosos entre os quais se situam o inferno e o paraíso, dos seus habitantes (almas e gentes), é um tema muito corrente no sufismo, e mesmo na filosofia iluminativa (‘erfãn). A contemplação de Deus é, evidentemente, mais rara, pois que este grau de perfeição está reservado aos maiores entre os santos. Em geral, Deus dirige-se ao homem por intermediários, anjos ou profetas, e só se revela aos seus íntimos. Se bem que todos os mestres não tenham falado dos seus êxtases, existem muitos testemunhos ou alusões ao estado de proximidade divina que domina o tema do amor, nomeadamente em Hallãj, Bastãmi, Rãbi’a, ‘Attar, Ruzbehãn Shirazi, Rumi, Farid, etc., e, bem entendido, em menor grau, em todos os místicos em geral.
Jean During