Marie-Madeleine Davy
Marie-Madeleine Davy foi professora na Universidade de Manchéster, depois encarregada de curso no EPHE. Dirige várias colecções de espiritualidade e fez numerosas conferencias nos Estados Unidos, na América do Sul e na Europa. Algumas das suas obras: L’Homme Intérieur et Ses Métamorphoses (Paris, L’Epi, 1975) e Encyclopédie des Mystiques (Paris Robert Laffont, 1972).
Todas as tradições religiosas apresentam ao homem duas vias paralelas que, no entanto, se encontram e coincidem no seu cimo. A partida, elas diferenciam-se, dada a dualidade da natureza humana: por um lado, a exterioridade centrada no rendimento; por outro, a interioridade comportando uma passagem progressiva a níveis diversos com vista de um aperfeiçoamento último. No Ocidente, o primeiro lugar é quase sempre dado à eficácia material ligado ao ter: o dinheiro, o triunfo, o papel desempenhado na sociedade. No Oriente, o problema é diferente; menos solicitado pelo sucesso temporal, o movimento interior manifesta-se em vista de um aperfeiçoamento da vocação humana.
A vida interior consiste na animação da dimensão de profundidade. Está ao mesmo tempo mergulhada e desperta. Mergulhada dentro operando uma mutação do homem pelo despertar das suas energias latentes.
O cristianismo deve ser considerado como uma vida e não como uma simples religião entre muitas outras. A mensagem cristã é uma mensagem de vida abrangendo todos os homens. Não é apanágio de um povo nem de uma raça: dirige-se a todos aqueles que desejam vir a estar vivos num Deus vivendo por intermédio de Cristo sob a moção do espírito Santo.
O cristianismo divide-se em três ramos: ortodoxia, catolicismo, protestantismo. Cada um tem a sua maneira de abordar a interioridade e de a viver. Quando a vida interior aumenta e alcança a sua plenitude, as diferenciações apagam-se. Também convém mencionar uma dupla atitude nos cristãos: uns estão estreitamente ligados e estritamente dependentes da Igreja oficial; outros apelam, em primeiro lugar, para uma igreja interior. Das igrejas oficiais, é mais fácil falar, porque obedecem a normas precisas, apresentam um ensinamento do qual as hierarquias garantem o funcionamento. Os que seguem a sua igreja interior dependem mais directamente da sua própria consciência e da sua vocação estritamente pessoal. Em si, a Igreja é única nas suas raízes. Liga-se à tradição apostólica. As divisões que a fragmentam foram provocadas por querelas intestinas que sobrevieram no curso dos séculos: O Grande Cisma depois a Reforma. Esta Igreja estende-se a todos os cristãos e não poderia limitar-se às pessoas que a dirigem e lhe asseguram o funcionamento. Está desfigurada como o rosto do próprio homem. Actualmente, ela parece agonizar, e esta agonia torna-a mais humana que o seu triunfalismo de ontem. A sua verdadeira função é estar em agonia até ao fim do mundo, como o Cristo de Pascal. Uma tal agonia é uma crucificação possuindo uma continua ressurreição a outro nível: menos formal, porque privada de certeza, menos humana, porque cessante de privilegiar, pobre, porque, enfim, despojada da sua tendência para possuir como um César. A agonia é aqui uma purificação, e ninguém pode pensar que a Igreja oficial não tivesse necessidade de uma tal correcção.
«Procurai primeiramente o reino de Deus.» A esta frase de Mateus (6, 33) segue-se a de Lucas (17, 21): «O reino de Deus está dentro de vós.» Assim é avisado o cristão de que tem de procurar primeiro o reino e que este se encontra nele. Estes dois textos englobam a vida cristã. É a partir deles que a aventura cristã começa e se desenvolve. Respondendo a este convite, o homem de boa vontade interroga-se: Onde situar este dentro? Como alcançá-lo? Qual é o caminho mais curto para descobrir este reino? Se se expande em questões múltiplas e ociosas, ei-lo perdido. O importante é pôr-se à obra e procurar. Em primeiro lugar, o que procura descobre a sua amplitude, sente-a confusamente sem poder chegar a circunscrevê-la. Uma tal visão é justa, porque a interioridade está privada de limites. Se cede à vertigem nascida da consciência desta vastidão, vai andar à roda em torno de si mesmo sem conseguir penetrar no interior da sua imensidade. «A beleza da filha do rei está dentro», ensina-lhe o salmista (Salmos, 45,14). O reino é beleza e o que procura, passando a estar apaixonado por esta beleza que ainda ignora mas que se situa nele, vai tomar o caminho do amor. É a via mais curta, e o seu amor poderá transformar-se pouco a pouco em conhecimento.
Mas em primeiro lugar o homem sente a sua ignorância, ela é trágica e desespera-o: verifica que não se conhece. Não possui, efectivamente, nenhuma experiência da sua própria realidade. Antes de empreender a sua viagem para dentro, importa-lhe saber quem é.
O conhecimento de si é comparável a uma abertura no sentido musical do termo; eis por que precede qualquer outro conhecimento. Quando o homem se olha e incide a sua atenção em si mesmo, logo observa que é «vários», dada a pluralidade dos seus eus: julgava-se um e é múltiplo. Todos estes eus se sucedem e por vezes se imbricam. Assim, pode amar ou odiar, ser alegre ou triste, generoso ou egoísta quase no mesmo instante. A despeito deste parcelamento que acusa a sua miséria, o homem descobre em si mesmo a sua grandeza, a sua própria superação.
A sua beleza exprime-se numa nostalgia de absoluto e de unidade, uma nostalgia de transcendência, de perfeição, de imortalidade que nada tem de comum com o idealismo de certos filósofos. A não ser que seja anormal ou ande constantemente distraído, todo o homem se interroga sobre a sua vocação humana.
Segundo Platão (Apologia, 1, 28), «não tem a vida de um homem aquele que não se interroga sobre si mesmo». O cristianismo, herdeiro dos seus primeiros séculos da filosofia grega, dá uma extrema importância ao conhecimento de si. Eis a razão por que se verão os padres gregos recomendar especialmente a reflexão sobre si mesmo, sobre a sua origem e o seu destino.
Conhecer-se é descobrir em si a imagem divina no sentido do texto da Génese: «Deus criou o homem à sua imagem e à sua semelhança.» Esta imagem é comparada a um germe divino, infinitamente pequeno e frágil. Esta semente é o equivalente de um grão de mostardeira, de mostarda, de um bago de arroz. A sua função é crescer e dar o seu fruto, tal como um grão de trigo lançado para um rego, tem de crescer e dar espiga.
Toda a criatura é «matriz», a semente é divina, convém aquecê-la para a fazer desabrochar: tal será a obra da vida interior. O importante é nunca perder contacto com a fonte do seu ser, fazê-la jorrar como uma água viva a fim de saciar a sua sede. Esta semente divina é chamada «reino», «pérola», «tesouro». Encontra-se no fundo do fundo do ser; eis por que é necessário abrir o poço. A antropologia espiritual Segundo a antropologia espiritual, aos dois níveis, «exterior e interior», correspondem duas vias, uma carnal e outra espiritual. Segundo Orígenes, estas duas realidades do homem comportam uma inteligência, um amor, membros e sentidos distintos. O homem exterior é terrestre, o homem interior celeste; terrestre significa o visível e celeste o invisível.
As expressões «homem interior»e «homem exterior» pertencem ao vocabulário cristão desde o apóstolo Paulo. Para aprender estes dois termos, importa recorrer à estrutura humana tal como é apresentada na época patrística. Segundo Orígenes, a fina ponta da alma, é o lugar do nous, do espírito que recebe a influência do Espírito Santo. No mistério da criação, o homem interior levava vantagem sobre o homem exterior; depois da queda, que provoca um afastamento em relação ao divino, dá-se o contrário; tornar vivo o homem interior equivale a tornar-se um homem novo. Ora é a vida interior que garante ao homem novo a perfeição do seu crescimento. De onde a oposição apresentada por Agostinho entre velho homem e homem renovado. Na vida interior, 0 homem passa sucessivamente pelos estados animal, racional e espiritual, correspondendo esta evolução a uma passagem do espesso ao subtil. No estádio espiritual, a adesão a Deus passa a ser comunhão e divinização. Em todos os patamares a fé mantém-se presente, mas, pouco a pouco, passa da obscuridade à luz, das dúvidas à certeza.
Esta fé apoia-se na revelação divina. No Antigo Testamento, o Eterno dirige-se a um povo. No Novo Testamento, revela-se a todos os homens na pessoa de seu Filho sob o impulso do Espírito Santo. A estas duas alianças, a antiga e a nova, sucede-se uma terceira aliança. O homem é por ela responsável. É ele, pela graça divina, o sujeito operante. Ao tomar consciência da sua dimensão interior, ele vem a ser transfigurado num homem novo. Assim, a terceira aliança corresponde ao homem novo. Uma tal aliança inaugura novas relações com a divindade e com a criação desde as pedras até toda a humanidade, passando pelos minerais, pelo vegetais e pelos animais. Responsável em Adão por um desvio das criaturas, o homem interiorizado traz ao Cosmos a sua salvação.
O Deus escondido é inefável. Nada pode ser dito dele, e ninguém o pode ver sem pôr a sua vida em perigo. A distancia entre ele e o homem surge intransponível. O Cristo manifesta o Pai, é «a via, a verdade e a vida» (João, 14, 6) e por consequência o modelo e a ponte para descobrir a profundidade interior que o reino de Deus encerra tal como uma terra encerra um tesouro. O cristão tomará Cristo como protótipo da sua marcha interior, passará pela sua humanidade, depois pela sua divindade. Através da dupla natureza de Cristo, descobrirá as suas duas naturezas. Por elas e nelas a encarnação repete-se e a redenção prossegue. «A humanidade de acréscimo» de que falou o apóstolo Paulo ganha todo o seu relevo na vida interior que conduz à deificação na luz do Espírito Santo.
A revelação interior decorre da vida apreendida dentro de si mesma. Apresenta-se como a consequência da revelação divina. Porém, é conveniente subscrever a primeira a fim de receber a segunda, que é comparável a um murmúrio ouvido no silêncio do coração. O Verbo dirige-se à alma. Espera o seu consentimento para se fazer reconhecer e nela se engendrar.
O Verbo para se encarnar tem necessidade da aquiescência da alma
Aqui o modelo do homem interiorizado é a Virgem Maria. A encarnação está suspensa no «sim» da sua aquiescência. O convite é repetido a cada homem em quem a vida interior se anima e o seu «sim» tem de ser perpetuamente renovado. O homem dá especialmente a sua resposta ao amor divino ao descobrir em si mesmo o reino de que é portador. Cristo é a imagem perfeita do Pai, o homem a imagem da imagem segundo o ensinamento patrístico. É pela vida interior que o cristão recupera a semelhança que tinha perdido com o pecado original e que faz dele o imitador de Cristo e sua testemunha viva. O reino que o cristão vai descobrir dentro de si apresenta-se como uma revelação, uma irrupção da eternidade no tempo.
Pela exterioridade, o cristão inscreve-se na cronologia, é o contemporâneo dos acontecimentos que se acumulam durante um certo número de anos correspondendo à sua própria existência. Pela interioridade, o homem torna-se o contemporâneo de toda a História e dos acontecimentos espirituais que se cumprem na «meta-história». De onde a sua dupla dimensão, ao mesmo tempo horizontal e vertical. É a vertical que assume a horizontalidade. A exterioridade é fugitiva, está condenada à morte. A interioridade é imortal, porque passagem da morte à vida. Da mesma maneira que o homem se degrada pelo envelhecimento, o homem interior rejuvenesce, ensina o apóstolo Paulo. Assim, as leis respeitantes à vida exterior e à vida interior são antinómicas; deixam de se exprimir em termos de dualidade no instante em que o homem tornado vivo conquistou a sua perfeita unidade. Pela vida interior, o estreante verifica o seu esquartejamento: sente-se dilacerado e sofre tragicamente com as suas oposições; a sua natureza terrestre arrasta-o com força para o que é grosseiro; a sua natureza divina condu-lo para o subtil. Se olhar a ave, apercebe-se de que o justo equilíbrio das duas asas assegura o seu voo. Assim, o homem seduzido pela vida interior não despreza a exterioridade, assume-a pela sua própria interioridade; da mesma maneira, defende-se de cair num angelismo ilusório ou num materialismo que o colocaria abaixo do animal.
No seio de um verdadeiro cristianismo fiel à sua tradição, a vida interior tem de orientar-se para Deus, que se torna em Jesus Cristo uma pessoa concreta. Mas Deus não é exterior ao homem, objectivá-lo seria reduzi-lo a um ídolo. O Deus vivo encontra-se sempre escondido na profundidade do homem, logo é preciso redescobri-lo constantemente. Não pode ser localizado; não seria possível apreendê-lo. A vida interior parece aproximá-lo, mas uma tal proximidade é um sonho. «Quando se fala de Deus, não é de Deus que se fala», evoca-se apenas uma ideia. Não se apanha o ar que se respira, não seria possível distingui-lo pelo olhar: basta nele nos movermos e respirarmos. Da mesma maneira, a água escorre por entre os dedos, apenas importa mergulhar a fim de ter contacto com ela.
A via que conduz ao divino não poderia ser balizada pela razão ou pelo intelecto. Deus sente-se, mas dele nada se pode dizer, a única prova da sua existência consiste na experiência que dele se tem. Eis por que Nicolas Berdiaev pôde escrever: «Deus em nada é semelhante à ideia que dele se faz, absolutamente em nada.» Erro seria também exilá-lo no céu. O bispo Robinson, na sua obra Honest to God, dizia que de boa vontade se localizava Deus num espaço, mas diferente do nosso. Ora Deus não é localizável, pensar que o é, é dar prova de ignorância. Deus é mistério. A vida interior mergulha no mistério recusando todas as caricaturas da Divindade.
De qualquer maneira, pela vida interior, Deus não se coloca como um problema a resolver. Segundo Thomas Merton, procurar uma solução para o problema de Deus equivaleria a procurarmos ver os nossos próprios olhos. É impossível vermos os nossos próprios olhos, pois é pelos olhos que vemos. Deus é a luz pela qual vemos, e ao mesmo tempo aquele que olha e aquele que é visto; é o amor pelo qual amamos. É pois, conveniente desconfiar da selva das palavras, de toda a linguagem ou discussões ociosas que não conduzem à interioridade mesmo quando de tal dão a ilusão.
A interioridade descobre-se como uma terra prometida, é conveniente ir ao seu encontro. Aliás, ela própria se aproxima e se dirige para aquele que a procura, oferecendo-se ao seu olhar. No itinerário interior, não há ponto de referência. Acreditar descobri-lo seria ilusório. Não existe nenhuma referência sensível, nem mental, nem voluntária. «Nada», diz João da Cruz quer dizer «nada». A vida interior é mais um desentulho que uma aquisição. A fonte está obstruída, é bom desentulhá-la.
Num tal caminhar avança-se em pleno mar: um mar sem costa que o olhar possa distinguir. Não há pista que fique para trás, não há caminho traçado na frente. Nenhum porto tranquilo onde se tenha refúgio; nem ancora para lançar; as amarras estão partidas. Pode sentir-se o medo do naufrágio: é preciso vencê-lo, porque toda a inquietação faz cativo. Apenas a liberdade, a independência, a confiança na graça provocam a transparência: a opacidade dissolve-se e a água torna-se pouco a pouco translúcida. A descrição dos caminhos percorridos pelos outros encoraja. Julga-se ter companheiros de viagem e pouco importa a época em que viveram. Todavia, ser retido por eles e pela sua experiência impediria de seguir o próprio caminho. A viagem interior é a de um navegador solitário. Este exercitou-se antes de começar o seu périplo aventureiro: possui no seu navio tratados de navegação. Porém, tem de enfrentar situações imprevistas e defender-se dos perigos, quase sempre por um simples bom senso e uma clara intuição.
O mesmo acontece com aquele que empreende a viagem do interior. Pode consultar especialistas, munir-se de livros relatando marchas análogas à sua, mas terá de efectuar sozinho a sua própria busca interior: esta solidão pode pesar-lhe como um fardo. Na realidade, é o resgate da sua liberdade e da sua fidelidade à sua vocação pessoal. Na descoberta da vida interior, apresentam-se tantas vias diferentes quantos os indivíduos. Todavia, os diversos caminhos levam a uma finalidade idêntica. Por não descobrir em si este fermento, o homem tem tendência para procurá-lo fora: é um erro pernicioso que o faz perder tempo, energia e que o distrai do essencial. Voltar a si mesmo, quer dizer, viver por dentro, permanecer consigo, tal é o segredo comunicado pelos homens de luz.
No curso da sua viagem em direcção à vida interior, o navegador nunca é abandonado.
Na vida interior, o homem nunca é abandonado. Fisicamente, pode sucumbir à fadiga, à fome, à solidão, pode encontrar quem passe, quem o olhe, sem que por isso o assista. Dentro, basta que clame a sua miséria, o seu despojamento, que peça auxilio, que reze: os socorros logo lhe são enviados. O beneficiário ignora de onde eles provêm, porém eles lá estão e salvam-no não das provas mas das armadilhas e dos perigos. É a razão por que o homem exterior recebe quotidianamente a sua ração de luz, e está aí o seu «pão de cada dia».
Podemos perguntar como se mete o homem a caminho da sua interioridade. Esta procura – viu-se – responde a uma nostalgia de beleza, de aperfeiçoamento, de imortalidade e também a um amor do qual sente a realidade, desde que se recolha no seu espaço ilimitado, privado de toda a fronteira, mais vasto que o Universo. O que procura, que se aventura na vida interior, semelhante a um novo Cristóvão Colombo, visita um continente que nunca poderá contornar. As descobertas sucedem-se e ele vai de surpresa em surpresa, de admiração em admiração. Certamente encontra obstáculos, provas que são outros tantos exames da passagem que necessariamente tem de vencer ou de recomeçar. Na vida interior o viajante não salta de estação, tal como a Natureza, é fiel ao ritmo das estações. Para andar depressa, tem de abandonar as bagagens, deslastrar-se, chegar a uma completa nudez, tornar-se livre a fim de favorecer a sua empresa. De onde a necessidade da ascese.
Toda a marcha respeitante à vida interior começa e prossegue pela ascese. Sem ascese, o homem interior está condenado à inautenticidade. Ela não é um fim, mas um meio. Contentar-se com uma ascese exterior respeitante apenas ao corpo é insuficiente. Para quê privar-se de alimentos se o coração não jejua, se os pensamentos, múltiplos na sua mobilidade, dissipam o espírito? A ascese tende a cortar as raízes do narcisismo, ou antes, a desenraizá-las, e isto perpetuamente, porque, como as cabeças da hidra das sete cabeças, desde que uma raiz é cortada, uma outra volta a crescer no seu lugar. Os eus são numerosos, quando um deles parece morto, outro surge. Para o homem moderno, a ascese exige também um constante pôr em questão. Não se trata de alimentar dúvidas e inquietações, mas de colocar questões que só encontram a sua resposta no aprofundamento. A ascese é um perpétuo desempenho necessitando de uma disciplina na maneira de viver, de se alimentar, de dormir e também de se recrear, de trabalhar, de ler, de pensar e de se comportar em relação a outrem. À ascese do intelecto permite não confundir o essencial com o acessório, não se derramar em palavreado quanto ao que escapa não só à razão, como à inteligência. Assim, a ascese continua tem como resultado um perfeito domínio. Para o cristão, é acompanhada por uma oração constante. Esta é, por dentro, uma perpétua liturgia. Faz uso de palavras: no seu cume torna-se silenciosa, abertura, disposição para receber a graça sem a qual nenhum passo na vida interior poderia efectuar-se. A oração não é apenas apelo, é também louvor, gratidão, confiança e abandono. A oração dirige-se a uma presença que vulgarmente se chama Deus.
Aqui, a compreensão é requerida mais do que a violência como tal. À partida, o esforço pode sentir-se na sua dureza, na medida em que a espontaneidade se torne um estado, a conduta estabiliza-se sem tensão. Para o homem interior, a educação do corpo não cessa de prosseguir. Abandonar o corpo por causa do seu peso e das suas exigências seria expor-se a encontrá-lo, mais dia menos dia, levantado como um obstáculo. Ao isolar e ao desprezar o seu corpo, o homem divide-se e, parcelando-se, perde-se. Os exercícios de distensão e de respiração, a presença atenta aos seus órgãos para os encorajar no seu bom funcionamento assegura-lhes a vitalidade. Ter confiança no corpo é uma boa atitude, se não se apegar desmedidamente a ele. Ele está «de passagem», é preciso tratá-lo bem, sem por isso se tornar seu escravo. Não se muda de corpo como se muda de montada. As cordas de um arco têm de estar esticadas para vibrar, mas é preciso evitar uma tensão que seria esgotante.
O homem parece reduzir-se ao corpo, aos olhos de uma maioria de indivíduos; a actividade do sexo não é apenas prazer, mas valor mercantil exposto no teatro e no cinema. Se a vida interior respeita o corpo, todavia, durante muito tempo, teve tendência para o desprezar. O corpo vinga-se por ter sido o mal-amado tornando-se agora o único amado. A ascese dá ao corpo o seu lugar sem deixar de o ensinar a manter-se ao serviço da vida do espirito. Por um aquecimento progressivo que a ascese, a oração, a meditação, a calma do corpo, do intelecto e do coração produzem, o «ego» começa a fundir-se, depois desaparece. O indivíduo já não está preocupado consigo: ei-lo privado de projectos e de desejos. Atravessa assim «a noite» descrita por João da Cruz. Nada o atrai e tudo lhe parece insípido. A necessidade de assistir à agonia do seu eu pode parecer dolorosa; todavia, os autores espirituais recomendam não vacilar durante esta morte. Esta agonia e esta morte conduzem à pobreza, ao desprendimento e principalmente ao abandono da vontade própria. Quando o homem abandona o seu eu, ou, melhor, os seus eus, a alegria surge. Da operação de Deus na alma, nada pode ser dito. A este respeito Mestre Eckhart escreve: «Este conhecimento não conhecedor mantém a alma numa suspensão (…). A alma sente bem que é, mas não sabe como é e o que é.» E Teresa de Ávila terá uma linguagem idêntica ao falar, no Castelo da Alma, da inconsciência que acompanha a oração: «Todos os nossos poderes estão adormecidos.» E ainda: «O esquecimento de si é tal que a alma parece não ter mais ser (…), já não se reconhece (…), não se preocupa com o que pode acontecer.» Segundo Mestre Eckhart, importa não ter consciência da sua união com Deus: «Lá onde acaba a criatura, ai começa o ser de Deus.» Segundo Eckhart, se a alma pudesse aniquilar-se, ainda que fosse por um instante, tudo o que pertence ao mistério incriado dentro seria descoberto.
Toda a arte se aprende, toda a profissão se ensina. Existe uma arte de viver, como uma arte de amar, e, portanto, uma arte da vida interior. Tem os seus guias. O mais precioso de entre eles encontra-se no interior de si mesmo. Pouco importa o nome que se lhe dê. Podemos chamar-lhe o «mestre interior», como Agostinho. Mas tem de ser descoberto. Os outros mestres não terão outra função que não seja favorecer este encontro de si com o si supremo, o elemento mais vivo do ser.
A arte da vida interior é subtil. Vai do conhecimento de si à iluminação, passando pela ascese, pela concentração, pela meditação e pela oração. Comporta a aprendizagem da pobreza, da perfeita renúncia. Desemboca no vazio. É um lugar que a maioria dos homens não visita. É possível nascer, viver muito tempo e morrer ignorando-o. Podemos acreditar que lhe tocamos, porém ele recua à medida que nos aproximamos, pois está sempre por conquistar, salvo para os perfeitos, de que se torna o lugar essencial. É o meio da roda que permite a esta mover-se. Este vazio chama-se assim porque não se poderia dar-lhe outro nome.
A viagem interior conduz à descoberta do fundo da alma. «Há na alma um fundo secreto de onde decorrem o conhecimento e o amor; este alguma coisa não conhece e não ama; são os poderes da alma que conhecem e que amam.» Ora este fundo secreto não tem passado nem futuro. Desde que o homem ali penetre, situa-se fora do tempo e do espaço. É assim que o itinerário da vida interior desemboca na eternidade, «lá onde nada existe para esperar e nada para acrescentar, nada a ganhar e nada a perder». «Este fundo secreto compreendeu em que assenta a beatitude.»
Alcançar este fundo, tal é a aposta da vida interior e de certo modo do seu segredo. Está-se assim muito afastado dos aspectos dogmáticos e morais de que por vezes se carregou o cristianismo. A lei, essa, por exemplo, apresentada pelos mandamentos, oferece-se como um quadro, logo uma exterioridade, e não concerne a própria vida interior. Mas é evidente que aquele que se encaminha para o fundo do seu ser dominou as suas paixões e as suas cobiças ou, mais exactamente, elas separaram-se dele. O homem interiorizado sabe que não tem de abandonar os seus divertimentos, é abandonado por eles. Quando uma criança cresce, deixa os seus jogos, ou antes, os jogos deixam-na. Mas ainda, a borboleta esquece que foi lagarta, rastejando como uma serpente. Voa e está ai a sua felicidade resultante da sua vocação de borboleta. Assim, quando o homem toca no seu fundo, metamorfoseia-se. Está ai o milagre produzido pela vida interior.
Quando o homem se introduz neste fundo, não tem para ele exterioridade nem interioridade, nem fora nem dentro, nem terrestre nem celeste. Tudo é uno. É por esta unidade que o homem interiorizado encontra todos os homens e os considera todos juntos como seus irmãos.
Antes, podia emitir juízos de valor, comparar os pensamentos e os actos de outrem com os seus. Pertencia a uma religião da alma: aquele que divide, parcela, opõe e pode massacrar outrem em nome da sua fé. Em troca, tendo o homem descoberto a dimensão de profundidade do seu ser pertence à religião do espirito; desde que atinja o seu centro, logo se torna «ilimitado» e compreende que as fronteiras são imaginárias. Não tem prisão, o homem é o único responsável pelo seu cárcere. É ele que o constrói, que o fabrica pelas suas próprias mãos. Ele próprio tece o pano, de que é ao mesmo tempo o tecelão e a vítima. Alcançando o seu fundo, que é ao mesmo tempo a sua dimensão, de profundidade e o seu centro, introduz-se num universo privado de obstáculos, porque sem dualidade. Sabe que existem homens em marcha, outros que não foram ainda seduzidos pela vida interior e um pequeno número de indivíduos que puderam, por graça, descobrir este fundo secreto e que se mantêm dai em diante num estado de júbilo. Tomados vivos, os choques, já não poderiam ferir. Porém, a sua compaixão em relação a outrem é total: eles desejam dar a partilhar a sua alegria, a sua eternidade.
«O amor da partilha e a partilha do amor», segundo Baudouin de Ford, cisterciense do século XII, pertencem à vida interior. Quando o homem se interioriza, é seduzido pela sua dimensão de profundidade, sair dela exige da sua parte um esforço. Depois vem um instante em que deseja partilhar, quer pela oração contemplativa, que não comporta modo algum exterior, quer por um pôr em comum expresso concretamente. Dividir a existência entre a acção e a contemplação, opô-las entre si, como muita vez se fez no curso das idades, não responde à realidade. Da mesma maneira, falar de uma dualidade entre a interioridade e a exterioridade seria condenar o homem ao dilaceramento. Vida dentro e vida fora não são mais do que uma, desde que o homem se tornou culpado de assumir a sua vocação humana espiritual. De facto, o homem é comparável a uma ave cujo voo é garantido pelo equilíbrio feito das suas duas asas. Estas permitem-lhe lançar-se no seu voo, manter-se no ar ou pousar num ramo. Estas duas asas, encontrando as suas análogas na exterioridade e na interioridade, são uma e outra necessárias, se bem que muitas vezes o homem, por ignorância da sua interioridade, dela se afaste a fim de se entregar unicamente à acção externa. De facto, a interioridade é mais do que uma asa, é uma vida que anima a existência de dentro e de fora. Se o homem a negligencia, não é mais que um autómato, a engrenagem de uma máquina em estreita dependência dos choques provenientes de fora.
Aquele que realiza a sua dimensão de profundidade não deseja falar da sua dimensão interior, a não ser em casos raros, por exemplo com um mestre espiritual capaz de o iluminar. Em relação àqueles que partilham a sua experiência, todo o encontro é inútil. Não tem necessidade de ser encorajado pela presença de outrem, porque se tornou capaz de se assumir. Basta-lhe a troca de um olhar, de um sorriso, de distinguir a sonoridade de uma voz para saber que se cruzou no seu caminho com outros viajantes da interioridade. Mas existem aqueles que procuram, que tropeçam e são presa da angústia e da derrelicção. A esses dará a sua ajuda na medida do seu pedido.
Hoje, os grupos espirituais pululam, é possível falar de corpúsculos centrados na aquisição da interioridade. A confusão é fácil e importa evitá-la. Todas as épocas viram aparecer pseudo-sábios que podiam mesmo, por vezes, fazer fortuna. Durante os períodos de crise e de pôr em questão, é normal que indivíduos prossigam em conjunto uma investigação e ponham em comum a própria experiência. Mas o mais frequente é tratar-se menos, nestes grupos «espirituais», do estudo de uma vida interior real que de trocas tagarelas situando-se ao nível psicológico. A ilusão, a falta de lucidez e de discernimento favorecem os desprezos e os fracassos. A compreensão não deve transformar-se em complacência, senão há uma cumplicidade numa fraqueza partilhada. O calor difuso emanando destas pequenas colectividades é tranquilizante; o indivíduo sente-se tomado como encargo, é libertado do peso de si mesmo, quer dizer, das suas próprias questões. A miopia espiritual pode revestir a aparência do sério e a efervescência a do fervor. As comunidades distinguem-se das colectividades. As primeiras agrupam pessoas unidas tendo em vista a perseguição de um mesmo ideal, a colectividade reúne indivíduos.
Quanto mais o homem se interioriza, mais a sua vida interior é viva e mais a sua relação com outrem se torna justa e calorosa. O homem interior não tem em conta algumas diferenças sociais, raças e filiações religiosas. Para ele, as únicas diferenciações que nota, sem por tal julgar os homens, consistem numa visão da sua libertação realizada, próxima ou a chegar. Sendo as alienações destruidoras da interioridade, o homem interior eleva-se contra tudo aquilo que o ameace nos Estados, nos sistemas e mesmo nas religiões. A sua dimensão comunitária é inseparável da sua interioridade mais intima. O homem interiorizado é perfeitamente encarnado e aberto a todos.
Podemos perguntar-nos se a vida interior é fonte de poderes e de fenómenos tais como a levitação, a bilocação, o êxtase, as visões. Os verdadeiros místicos desconfiam daquilo que se aparenta com o paranormal. Alguns possuem a «leitura do coração», ou seja, podem distinguir, como num espelho e sem juízo, o estado espiritual de outrem. Captam as vibrações dos seres, o seu estado estático ou dinâmico.
A Igreja é de uma extrema prudência em relação a estes fenómenos. Nunca se apressa em lhes reconhecer a autenticidade. No Evangelho, os milagres têm por finalidade provocar a fé, em Cristo, dos Judeus e dos pagãos. Servem, assim para reconfortar os espíritos inquietos estimulando a sua coragem. Muitas pessoas simples, põem-se à espera dos prodígios, ignorando que os mais importantes se produzem dentro e não fora. Ora os progressos da ciência, o estudo dos povos primitivos, em especial de África e da Oceânia, permitem uma nova aproximação de quanto constitui o paranormal e o parapsicológico: importa não construir ilusões. Certamente, o indivíduo pode ser presa de forças tanto luminosas como obscuras. Partilhá-las é, por vezes, difícil, de onde a prudência da Igreja a seu respeito. Por outro lado, importa sempre não confundir o parapsicológico com aquilo que pertence ao domínio do espirito. Assim, sem recorrer às forças de luz ou de trevas, numerosos fenómenos podem produzir-se sem que o sobrenatural tenha de intervir. A conversão do coração, a descoberta da sua dimensão interior são milagres maiores do que caminhar sobre as águas ou elevar-se nos ares. O maior dos milagres, como o observou Lilian Silburn, consiste na libertação do tempo e do espaço, na liberdade conquistada graças ao «deslocamento» do eu. Falando do místico, Lilian Silburn escreve: «Actos e pensamentos têm por fundo uma viva inconsciência: ele pensa sem pensar, age sem agir, conhece no seio de um verdadeiro desconhecimento. E este fundo indiferenciado é para ele infinitamente mais precioso do que as manifestações que são desempenhadas à superfície. Logo, ele não perde contacto com ele, mesmo durante o sono.»
No homem interiorizado e a fortiori no místico, a atenção torna-se aguda, e produz-se como que uma visão interiormente privada de toda a manifestação exterior. Este conhecimento intuitivo cumpre-se sem que o indivíduo o provoque, pode mesmo não ter consciência de que por este conhecimento se distingue de outrem. Ele vê sem desejar ver, toda a curiosidade é banida do seu comportamento. Em certos casos, pode prever sem que por isso profetize. «De maneira maravilhosa, recordando-nos, não nos recordamos; vendo, não vemos; compreendendo, não compreendemos; penetrando, não penetramos», dirá Richard de Saint-Victor (século XII) na sua obra Benjamin Major. Falando da alma descrita por Eckhart, Rudolf Otto apresenta-a como despojada de toda a essência própria. «O seu coração é sem fundo, a sua alma sem consciência, o seu espirito sem forma, a sua natureza sem essência (…). Ela ouve sem palavras, ela vê sem luz.» As palavras não são necessárias, porque a apreensão interior se efectua numa experiência espontânea. Privada de toda a determinação, a pura consciência não tem necessidade de luz especial.
O homem interiorizado vive com a mesma facilidade no invisível e no visível; mantém-se no seu princípio e a sua existência transfigurada permite-lhe decifrar o que para os outros continua obscuro. Os véus que escondem e esfumam a realidade foram afastados. O que obstruía a sua fonte foi pouco a pouco desentulhado, de onde a sua lucidez e também a sua impassibilidade situando-o para além do medo, da inquietação e dos cuidados.
A vida interior apresenta riscos como toda a viagem e toda a aventura. Estes provêm da dualidade e da falta de discernimento do indivíduo interiorizado.
O perigo mais grosseiro depende do orgulho espiritual. Este sentimento resulta da consciência de uma eleição, de um saber que a maior parte dos homens não possui. Um tal orgulho aparenta-se com o orgulho intelectual, porém é mais pernicioso. Este comportamento só pode afectar o que principia, porque, desde que o homem penetre na sua profundidade, descobre a sua ignorância. Quando o apóstolo Paulo faz alusão à ciência que incha (scientia inflat), não poderia tratar-se unicamente da ciência profana, mas de todo o conhecimento que não se move para o seu cimo em «desconhecimento».
Na junção do psiquismo e da iluminação, situa-se uma armadilha. É comparável à vertigem sentida por um alpinista não treinado. Situado num pico, já não ousa iniciar a descida ou, seduzido pela beleza de um cume, recusa-se a voltar ao vale. O homem captado pela sua descoberta pode tornar-se inapto para a exterioridade: ei-lo presa de um pseudo-angelismo. Interiormente acredita mover-se à vontade, exteriormente o seu comportamento é o de um diminuído cambaleando na existência, tal como um homem ébrio. Privado do espírito de discernimento, ele está submetido às influências de fora e às numerosas transferências que as acompanham. Perdendo pé constantemente, é arrastado como uma rolha nas vagas e agarra-se sem discernimento a qualquer indivíduo, seja ele quem for, que toma por bóia de salvação. A bóia dá-lhe a ilusão momentânea de já não vacilar na existência. Neste estado, instantes de plenitude podem sentir-se na ilusão; são seguidos, aliás, de momentos depressivos de cansaço ou de desencorajamento. Não separado de si mesmo, o que procura está virado para as suas impressões, para os seus sentimentos afectivos, para o que sente e experimenta. Estar assim pregado a si mesmo apresenta-se como um perigo, tanto mais trágico quando não é sentido como tal.
Uma armadilha mais subtil encontra-se muitas vezes a meio caminho e pode encontrar-se também ao longo de todo o percurso. Consiste no desejo de comunicar de uma maneira intempestiva o seu próprio conhecimento. É normal desejar entregar a outrem o fruto da sua experiência. Ora, a tradição cristã, como de resto as outras tradições religiosas, exige a disciplina do arcano. Divulgar a ciência da interioridade com conhecimento de causa é sabedoria, espalhá-la sem discernimento é insensato. Não se manejam impunemente energias, a obra alquímica exige uma longa preparação, de contrário o sujeito não iniciado fica ameaçado no seu equilíbrio mental ou físico. Mais ainda, e sempre no interior do nível psíquico, o sujeito não preparado que se apodere daquilo que lhe é ensinado para adquirir poderes e os exercer em relação a outros faz a desgraça deles e a sua.
Em relação a outrem, a resposta tem de ser medida como se requer, e esta varia segundo a capacidade do recipiendário. Não se brinca com dinamite, pois há o risco de explosão. «Não deitar pérolas a porcos» significa não oferecer uma alimentação subtil aos que se situam ainda no plano do espesso e do grosseiro. O iniciador imprudente suscita o ódio num interlocutor não preparado. Todos aqueles que têm uma certa experiência da vida interior sabem que falar inconsideradamente provoca necessariamente, em troca, um choque contra si mesmo. Impossível evitá-lo, é uma lei que se aplica sempre no imediato ou ao retardador.
Assim se descobre, pouco a pouco, a necessidade de nunca lançar uma semente de vida interior em terra não lavrada, ou seja, não preparada para a receber. Esta preparação efectuada pelo indivíduo comporta uma perfeita lealdade perante si mesmo e de outrem, uma verdadeira humildade, um desejo de luz, uma generosidade total sem retribuição para si e um bom equilíbrio mental e físico. Enquanto o indivíduo não se esvaziou de si mesmo, é comparável a um «passador», nada retém, ou corre ainda o risco de «desmarcar», o que é pior. É em vão que se deita uma bebida num copo cheio.
Guia e métodos de interiorização O homem que empreende uma marcha interior tem necessidade de um guia? Outrora, nos padres do deserto, e também nas escolas iniciáticas orientais, o discípulo vivia perto do seu mestre. A existência em comum parecia preferível para que o ensino fosse justamente adaptado à capacidade daquele que o recebe. Ver viver o aluno, observar o seu comportamento, quebra as ilusões que se poderia manter a seu respeito. O discípulo conhece-se mal e o que ele exprime raramente é adequado: engana-se sobre si próprio por falta de discernimento e também de lealdade. Só um indivíduo já formado é capaz de revelar o essencial àquele que o conduz. Dadas as reacções mais ou menos previsíveis do indivíduo, o mestre espiritual arriscar-se-ia a perturbar o seu discípulo, e perturbá-lo mesmo profundamente, guiando-o sem o ver de vez em quando. Certamente, um bom mestre pode à distancia acompanhar um aluno, mas tais casos são pouco frequentes, porque raros são os verdadeiros mestres e raros os bons discípulos.
Na nossa época, pelo menos no Ocidente, a raça dos directores espirituais rarifica-se, enquanto os pseudomestres se multiplicam. Mais vale estar só do que ser guiado por algum que conduz a impasses ou esteriliza a vocação interior. Todavia, à, partida, e durante o percurso, seria preferível ser iniciado na vida interior; de contrário, há o risco de seguir por um falso caminho, viver na ilusão e numa completa falta de lucidez. O encontro com um ser de luz é, por vezes, o empurrão necessário para provocar a viagem da interioridade. Quando um discípulo penetrou realmente na sua dimensão de profundidade, o mestre espiritual continua presente nele, mesmo na sua ausência.
Na falta de mestre, o discípulo terá recurso nos autores peritos na marcha interior. O perigo aqui é de se dispersar e ler inutilmente. Bastaria fixar-se firmemente num só guia, sem procurar ao acaso. Se, por exemplo, alguém que procura pegasse nas obras de Eckhart para o ajudar na sua vida interior, facilmente poderia consagrar vários anos da sua vida à meditação das suas obras, mas não estaria por isso fechado à leitura dos padres da Igreja, em especial os capadócios (Basilio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo), dos padres do deserto, dos autores cartuxos, cistercienses da Idade Média e também da escola renana. É preferível ler directamente os textos (ou suas traduções) em vez de recorrer aos seus comentadores. A vida interior não tem data, pouco importa se os autores são antigos e se se exprimem no estilo da sua época. Aliás, a verdadeira linguagem espiritual nunca é prejudicada pelo tempo. Para um cristão, o melhor ensinamento encontra-se na Bíblia. É pelo Antigo e o Novo Testamento que o sujeito é conduzido à sua interioridade. A leitura assídua da Génese, dos salmos, dos profetas, da Sabedoria, do Eclesiastes e dos Provérbios será especialmente fixada, bem como a de todos os livros do Novo Testamento. Não se trata apenas de ler, mas de aprofundar, de «ruminar» e a Palavra divina tornar-se-á actuante na alma, no coração, no espírito.
Nas escolas monásticas (beneditinos, cartusianos-cartuxos-cistercienses), o primado é sempre dado à Bíblia tanto para o oficio como para a lectio divina. Hoje, os Beneditinos e os Cistercienses abrem de boa vontade as suas abadias às pessoas de fora, favorecendo assim os recolhimentos silenciosos. Alguns poderão ali encontrar abrigos de paz e de renascimento. Todavia, viver no mundo e residir para toda a vida numa comunidade religiosa representam objectivos muito diferentes. Mesmo nos conventos, os verdadeiros contemplativos são excepcionais, faltando também nos monges criadores. Por outro lado, não seria justo que pessoas de fora viessem perturbar a vida de silêncio de homens ou de mulheres que escolheram o daustro para melhor se entregarem «à única necessária»: o encontro e a união com a Divindade. Ter cura de alma pode também originar fenómenos de transferência e manter dirigido e director num psicologismo de mau quilate, por não libertador. E isto tanto mais que os mosteiros – pondo de lado os Cartuxos absolutamente fechados a toda a influência exterior – se encontram eles próprios, desde o último concilio, em pleno período de mutação. Existem, todavia, fundações novas, de espirito contemplativo, e, no entanto, abertas e acolhedoras, permitindo assim aos que o desejem aprender a orar e a penetrar na sua dimensão de profundidade. O mais importante, na ordem da vida interior, é que aquele que procura a sua interioridade se ponha à escuta do que se passa dentro de si próprio e tenha, na medida em que lhe seja possível, momentos de silêncio, de recolhimento e de retiro. Consoante a intensidade da sua escuta, será conduzido, guiado, formado na condição de se manter em perpétuo estado de vigília, com uma vigilância tanto mais intensa quanto não haverá ninguém de fora para o observar, o recuperar, o encorajar.
Actualmente, de boa vontade aparece quem se entregue ao ioga ou ao zen. São métodos preciosos, capazes de favorecer a sua marcha interior, na condição de que não se abandone por isso a sua opção cristã, se, no entanto, lhe agrada manter-se nela. A maioria dos cristãos ignoram a verdadeira tradição cristã e pensam de boa mente que não existem métodos no interior do cristianismo para abordar e aprofundar a vida interior. No entanto, há uma via, observada sobretudo nos mosteiros ortodoxos, que hoje fez a sua entrada na maioria dos conventos cristãos: é praticada não só pelos monges, mas também por aqueles que vêm de fora dos claustros: trata-se do hesicasma.
O hesicasma é um método de interiorização, conduzindo a um aperfeiçoamento que desemboca na deificação. O hesicasma apoia-se na prática da hesychia. Este termo, que significa repouso, tranquilidade, quietude, não pertence unicamente à linguagem religiosa: o seu emprego vem do grego profano. A aquisição desta calma e desta serenidade reflecte-se no corpo (jejum, vigília, trabalho), depois, na psique (a alma) e, enfim, no espírito pelo despertar das suas energias latentes. A importância é dada aos pensamentos que podem entenebrecer o coração e perturbá-lo. O hesicasta recusa os discursos interiores, as interrogações inúteis, os falsos problemas que dispersam a actividade do intelecto. Mais ainda, recusa todas as ideias sobre Deus que trazem o risco de cavar uma distancia entre o indivíduo e a divindade, reduzindo esta a um objecto exterior, ou seja, a um ídolo. O repouso em que desemboca a prática da hesychia não é estática, mas profundamente dinâmica. Podemos encará-la como uma reunião das diversas energias, a conquista da perfeita unidade entre o corpo, a alma e o espírito.
Estabelecido no seu coração, considerado como o centro de si mesmo (segundo a tradição oriental), o hesicasta entrega-se à «oração de Jesus» baseada na respiração. Repete-a infatigavelmente como um mantra. É no lugar do coração que se fixa a presença de Cristo. Esta oração, tornada perpétua, é chamada a «oração pura», convém ao coração tornado livre, por libertação dos pensamentos errantes, e puro como espelho perfeitamente claro.
A unificação é uma palavra que, aliás, nunca é perfeitamente atingida, porque quanto mais o homem avança na ordem da interioridade, mais distingue a distancia entre o que realiza e a própria perfeição. Todavia, chega um instante em que, totalmente separado de si mesmo, já não se pergunta quais são os seus progressos. Liberto de todo o cuidado que lhe diga respeito, possui o domínio das suas energias; deificado ou em via de deificação, já não coloca questões. Quando as dúvidas nele surgem, logo se fundem, tais os flocos de neve que não se «conservam» numa terra quente.
Toda a recusa de sistema apresenta um risco: o de criar uma condenação que seria só por si um sistema. Tal é o perigo que importa não subestimar. Todavia, a vida interior desenvolve-se fora de toda a fronteira; as diferentes limitações que ela poderia encontrar só podem degradá-la. «Lá onde está o espírito, lá está a liberdade.» (II Coríntios, 3, 17.) «A verdade vos tornará livres.» (João, 8, 32.) Mas a liberdade é uma difícil aquisição e não poderia consistir numa recusa das disciplinas. A revolta só é autêntica na medida em que seja desmedida, ou seja, o rebentamento de todas as prisões, sejam elas interiores ou exteriores. É libertando-se primeiro da sua própria escravatura que o homem se liberta de todos os laços susceptíveis de o reduzirem ao cativeiro.
A vida interior não depende do saber e da cultura, mas do verdadeiro conhecimento. Este é comparável a uma gnose. Não abrange em si um clã, mas acontece que poucos homens lhe têm acesso, porque sentem gosto por ela. Não se dirá, por exemplo, que a poesia, a criação pictural ou musical são artes aristocráticas: podemos simplesmente verificar que poucos homens possuem o dom de tais criações.
A vida interior escapa às categorias que diversificam os homens dadas as suas profissões. É tanto apanágio de um pastor como de um diplomata, mas, concretamente, a vaga interior do pastor favorece-a. Quanto mais cuidados se sentem numa profissão, menos a vida interior, à qual podemos pretender, tem oportunidade de ser exemplar.
Na medida em que a experiência se aperfeiçoa, ela move-se em experiência subtil. À partida, o homem está consciente daquilo que descobre. Enquanto possui esta consciência clara, a sua descoberta falha em profundidade. Podemos apenas falar de uma aproximação, porque a verdadeira descoberta, a apreensão, é transconsciente na sua penetração. O místico não tem de saber que reza, e basta que conheça da mesma maneira que o Sol resplandece, e não tem de saber que ele aquece e ilumina. Assim, o amor é unicamente amor: nada de mais e nada de menos.
Na experiência subtil da vida interior, o estado de desconhecimento leva a melhor à consciência do conhecimento. O puro conhecimento é de ordem extática, porque, indiferenciado, não poderia produzir-se ao nível dos sentidos exteriores e interiores. É para além que se produz a iluminação. Esta surge subitamente, inesperadamente. Assim, a iluminação ultrapassa um estado pessoal. Certamente que o indivíduo passa por uma experiência que lhe é própria, mas não a retém como um «ter», porque não sente o menor desejo de posse. A iluminação torna-se um estado não submetido a alternativas; na sua plenitude, ela ultrapassa o indivíduo que a recebe ou, mais exactamente, o indivíduo não tenta retê-la como um bem próprio. Esta iluminação expande-se no Cosmos de uma maneira difusa: é esclarecimento, amor cheio de ternura. Todos aqueles que têm fome de interioridade podem assim receber um maná anónimo, que descobrem independentemente do lugar onde se encontrem. O tempo e o espaço não poderiam intervir. O homem iluminado realiza-se num vazio supramental que lhe permite assistir, como espectador, ao desenrolar da sua própria existência. Privado de desejos e de projectos, ele situa-se para além do sofrimento, das dispersões e dos esquartejamentos; a morte é ela própria ultrapassada com todas as angústias que a acompanham.
Chega um instante em que todos os estados sucessivos estão atrás de si, não existe mais do que a transfiguração. A unidade é beatitude indizível, mas é também perfeita simplicidade e não distinção, porque se exprime numa perfeita liberdade. Assim, o homem transfigurado não é visível, quer dizer, reconhecivel, senão para aqueles que cumprem uma marcha idêntica.
Quando o homem é iluminado e transfigurado, para ele já não se apresentam estradas, problemas ou questões, nem mesmo imagens alegóricas ou simbólicas; recorre a elas unicamente para se exprimir. Tudo nele se tornou silencioso. Deificado, ele deifica, porque lança no Cosmos as sementes de metamorfoses. Assim, pela sua vida interior, o homem morre e, ressuscitado, prolonga a obra de Cristo no Universo. Nem sequer já tem de falar de Deus, porque se tornou uma testemunha viva da vida divina. Chama-se um ausente, uma presença não tem necessidade de ser evocada: está lá.
«Os acontecimentos desenrolam-se, na realidade do espirito, antes de se manifestarem na realidade exterior da História. Tudo o que acontece no mundo (…) tem uma origem interior espiritual.» Esta afirmação de Nicolas Berdiaev é significativa. Precisa a importância da vida interior e do seu impacte no mundo. A poluição que exerce, as suas devastações no ar, na água e na terra, é o resultado de uma poluição no próprio interior do homem. Uma tal poluição significa a sua agonia. Nada estará perdido enquanto houver homens tornados vivos graças à plenitude da sua vida interior. Dela fazem dom ao Universo e salvam-no transfigurando-o.
M.-M. Davy