Olivier Juilliard
Nascido em 1946. Foi encarregado de estudos no Secretariado de Estado da Juventude e dos Desportos. Colaborou na Encyclopaedia Universalis e é o autor de vários artigos de psicologia e de sociologia na revista ARC
A partir dos anos 1960, o Ocidente viu o desenvolvimento inesperado e misterioso da toxicomania juvenil. Considerado por uns como a consequência inelutável da crise política e moral do capitalismo, por outros como o efeito do relaxamento da moral liberal, por outros ainda como um regresso às antigas fontes da espiritualidade, o uso – abusivo ou não – dos produtos psicotropos – coloca de uma maneira geral o problema da percepção que o indivíduo contemporâneo tem de si mesmo na sociedade na qual se encontra mergulhado. Mas este mesmo uso – e principalmente se for abusivo – coloca previamente a questão do perigo que faz correr aos toxicómanos, tanto do ponto de vista da sua saúde física como no que concerne, à sua saúde moral.
De facto, o fenómeno da toxicomania contemporânea surge de imediato com uma complexidade notável, significativa das paradas que implica: política, certamente, mas também espiritual, moral, religiosa, e mesmo cientifica. No entanto, a recente vaga de toxicomania só começou por encontrar hostilidade, medo, incompreensão e, sobretudo, repressão cega e confusa de todos os governos, quando a mais modesta reflexão deveria conduzir cada um a perguntar-se que diferença convinha estabelecer entre as formas institucionalizadas de intoxicação (tabágica, alcoólica, farmacêutica) e formas consideradas como maiores e desviantes, bem poucos foram aqueles que compreenderam que nenhuma solução profunda seria dada à crise enquanto não fosse distinguida o sentido desta.
É que tudo se passa como se, na prodigiosa aventura que a arrasta para um máximo de cientificidade, de eficácia, de produtividade e de segurança, a civilização perdesse progressivamente a recordação das suas atitudes primitivas, da sua angústia original, do seu primeiro desejo. Não se trate de justificar – mesmo de autorizar – o abuso dos psicotropos em nome do uso mais ou menos sagrado que dele fizeram os nossos antepassados e que deles fazem ainda várias sociedades menos cientificamente desenvolvidas do que a nossa, mas apenas de se perguntar se o domínio do mundo e de si próprio, que toda a sociedade implicitamente persegue, não implica um tal recurso aos modificadores de consciência e à sua capacidade de oferecer ao espírito dos fenómenos desconhecidos possibilidades imprevisíveis, a imagem ou a ilusão de um poder insuspeitado. Ainda mais, é possível marcar no uso actual destes produtos – uso quase sempre liberto daqui em diante de rigorosas implicações religiosas – uma espécie de reacção, senão uma luta contra a racionalidade científica dominante: reacção confusa e um tanto ambígua contra uma lógica quantitativa acusada de destruir os elementos mais directamente perceptíveis e assimiláveis do real. Neste sentido, ver-se-á que dos estupefacientes mais violentos aos álcoois sofisticados da nossa época, uma mesma compulsão arrasta o comportamento do homem, porque se trata ainda e sempre deste «algures» que assombrava Baudelaire, drogado e maldito; trata-se ainda de encontrar um «novo» susceptível de trazer ao espírito o espanto de si mesmo, dos seus poderes, das suas fraquezas, dos perigos que sabe suscitar-se, como dos prazeres de que sabe deleitar-se. Os filhos da revolução científica e técnica do século xx, menos que nenhuma outra geração humana desde a origem do pensamento, não têm a sensação do desconhecido; tudo se passa como se da revolução científica não tivessem retido (quase sempre sem os compreender) mais do que o peso da lógica científica, a boa forma da continuidade do hipotético ao real, a implacável eficácia da análise matemática. A antiga atitude intelectual e moral, que considerava o mundo como infinito e o homem como essencialmente limitado, foi substituída por uma nova fé: é o Universo, por mais imenso que possa ser. que é limitado; mas o homem e os seus poderes não podem ter outros limites que não sejam aqueles que o homem a si mesmo fixa e que são, por isso mesmo, revogáveis. A droga, evidentemente, inscreve-se neste contexto, que está longe de estar marcado pelo pessimismo estreito e mesquinho com que muitas vezes se lida. Compreender o sentido e o papel dos produtos psicotropos, tanto nas sociedades primitivas como na sociedade contemporânea, conduzir-nos-á, insensivelmente, a compreender até que ponto o homem conservou, face a face com estas substancias, uma atitude infantil, seja ela de medo irracional ou de adoração sacralizante. Os conhecimentos científicos, por mais incipientes e incertos que ainda sejam neste domínio, deveriam demonstrar a todos os delatores ignorantes dos psicotropos (mas tanto mais apóstolos de uma repressão irreflectida) que o interesse que incide sobre estas substancias não pode cessar ex abrupto, mas que é o imenso proveito que o homem pode retirar do conhecimento destes produtos o único que poderá ditar as normas do seu uso.
Com efeito, quando o uso da «droga» (ou seja, dos modificadores da consciência) é pesadamente punido em todos os países economicamente desenvolvidos, e perseguido na maior parte dos outros países, a toxicologia e a farmacologia contemporâneas começam a decifrar a estrutura eficaz de alguns destes modificadores da consciência, os alucinógenos.
Foi assim que foi posto em evidência o papel muito particular de um núcleo azotado presente na maior parte dos alucinógenos, o núcleo indol. Quando não existe este núcleo, o azoto ocupa um outro lugar na molécula: surge assim na cadeia lateral fixada no número benzénico da mescalina; neste caso, fala-se de núcleo indólico potencial, porque ao ligar o azoto lateral ao núcleo reencontra-se o núcleo indólico característico. No entanto, esta descoberta não permite, só por si, qualquer conclusão; por um lado, porque o canhamo-indiano – se bem que alucinógeno – não contém este núcleo indólico; por outro, porque este mesmo núcleo indólico está presente em vários ácidos aminados essenciais, como o triptofano, que, por sua vez, está presente na maior parte dos nossos alimentos. Do mesmo modo, o Echinacactus Williamsii (mais conhecido pelo nome de peyotl) transforma um ácido aminado bem conhecido e muito corrente, a tirosina (que possui um núcleo indólico mas não é alucinógeno), em mescalina, alcalóide potencialmente indólico de forte poder alucinógeno. O núcleo indólico não basta, portanto, só por si, para explicar os poderes alucinógenos do peyotl ou da cravagem do centeio. No entanto, uma estranha semelhança se patenteia entre a estrutura bioquímica de vários alucinógenos e a de várias aminas que garantem o bom funcionamento do cérebro e do sistema nervoso no seu conjunto. De tirosina são, efectivamente, derivadas a adrenalina e a noradrenalina, mediadores químicos cujo papel na bioquímica do cérebro é bem conhecida; ora a mescalina apresenta uma estrutura extremamente próxima da destas substancias. Do mesmo modo, a efedrina é uma derivada próxima da tirosina; ora a efedrina possui propriedades psicotónicas bem conhecidas que conduziram à síntese das anfetaminas.
A estrutura do núcleo indol não basta, portanto, para explicar as propriedades alucinogéneas dos cogumelos mexicanos (peyotl), do Peganum Harmala das estepes afegãs nem da cravagem do centeio; no entanto, ao descobrir que a adrenalina, um dos mediadores químicos mais importantes, era susceptível de se degradar em adrenocroma e em adrenolutina, ambos nitidamente alucinógenos, certos biologistas supuseram que o poder alucinógeno da mescalina proviria do encerramento do seu ciclo potencial. Esta hipótese apresenta um interesse muito especial, materializado pela presença e pelo papel especifico do núcleo indol; efectivamente, nenhuma diferença bioquímica estrutural distingue certos alucinógenos dos mediadores químicos mais essenciais à actividade cerebral «normal»: assim, a serotonina, outro mediador químico importante, não é por si mesma alucinogénea (tendo também em conta as doses ínfimas que o organismo dela contém), mas pode vir a sê-lo pelo efeito de uma simples reacção química, a metilação.
Da mesma maneira, uma outra reacção química simples, a hidroxilação, parece determinar o poder alucinógeno do núcleo indol: é em especial o caso da psilocibina (alcalóide de certos cogumelos mexicanos) ou da bufotenina (do veneno do sapo). É assim que a análise de certas plantas sagradas conduziu os bioquímicos a sintetizar novas substancias alucinogéneas, tais como a DET (dietiltriptamina) e a DPT (dipropitriptamina), ambas homblogas de síntese da DMT (dimetiltriptamina), resultante da metilação da triptamina, que em si mesma não é mais do que um metabolito banal produzido pela degradação da triptofana presente na maior parte dos nossos alimentos. Do mesmo modo, a DOM (2,5-dimetoxi-4-metilanfetina), também chamada STP (S para security, T para tranquility, P para peace!), é um poderoso alucinógeno da síntese cuja estrutura, estreitamente aparentada com a da adrenalina, foi elaborada por comparação com a molécula de mescalina.
O que está em jogo nestas comparações, deixa-se adivinhar: se certa semelhança química une certas aminas cuja presença é necessária ao bom funcionamento do cérebro e certos alcalóides psicotónicos ou alucinógenos, não se é conduzido a admitir que as perturbações mentais, quase sempre designadas como «loucura», não são mais do que o produto de um certo desvio químico do organismo? Certas moléculas complexas (ácidos aminados) sofreriam certas reacções aberrantes devidas a uma modificação (ainda inexplicável) do metabolismo e seriam transformadas em moléculas alucinogéneas: a adrenalina seria assim transformada em adrenocroma, a acetilcolina ou a serotina seriam produzidas em quantidade excessiva, sofreriam depois uma metilação, etc. Hipótese muito sedutora se se tiver em conta o facto de as urinas dos grandes esquizofrénicos poderem apresentar uma dose anormal de um derivado dimetilado da serotonina, da bufotenina, já conhecida como principio alucinógeno.
Hipótese que certas experiências praticadas com animais pareceriam confirmar: assim, quando se injecta em aranhas soro do sangue de um doente esquizofrénico, estas comportam-se da mesma maneira como se as tivessem intoxicado com LSD ou mescalina. As aranhas põem-se então a tecer teias aberrantes, de malhas enormes ou muito pequenas, totalmente ineficazes para capturar insectos. Tudo indica, portanto, que o soro do esquizofrénico contém um corpo químico capaz de modificar brutalmente as atitudes vitais essenciais do animal. Hipótese sedutora, portanto, mas quanto ela é carregada de consequências: o esquizofrénico e talvez outros doentes mentais originariam eles próprios a sua própria «droga»; os toxicómanos, esses, só a introduzem no seu organismo de maneira descontinua, de modo que, quando se interrompe o uso do produto o cérebro reencontra uma actividade e um modo de funcionamento normais, mas não se pode supor que, em certos casos, a introdução da molécula alucinogénea desencadeie no organismo a produção – agora endógena – de moléculas homólogas? Esta hipótese não pode ser evitada, pois muitos casos parecem indicar que uma certa passagem da toxicomania à alienação mental pode produzir-se.
Seria preciso conhecer melhor do que conhecemos hoje o papel e o modo de funcionamento das aminas biógenas, tais como a serotonina ou a adrenalina, para poder explicar a acção dos alucinógenos sobre as aminas do cérebro. Não é possível, de momento, emitir mais do que suposições, quer porque o alucinógeno não possa ser distinguido da serotonina pelo enzima que transforma normalmente esta amina – o enzima transformaria então a molécula alucinogénea enquanto a própria serotonina seria metabolizada em bufotenina -, quer porque se admitiria que a molécula alucinogénea substituiria de maneira aberrante a serotonina, modificando assim a transmissão nervosa normalmente efectuada por ela e perturbando assim a intensidade e as características principais dos sinais nervosos transmitidos.
Assim se encontra colocada pela bioquímica do cérebro e a farmacologia dos alcalóides alucinógenos a imensa questão da «secreção do pensamento». Se, efectivamente, o pensamento doente deve ser um dia assimilado a uma desordem metabólica localizável (e talvez então curável), que novos conhecimentos virão à luz respeitantes aos mecanismos fundamentais do pensamento «normal»?
Na estrutura dos alucinógenos, a biologia contemporânea procura a via que a conduzirá aos mecanismos da produção do pensamento, nos quais discernirá, talvez, as razões profundas do uso destes produtos. Neste sentido, segue o caminho inverso da marcha dos toxicómanos, que se abandonam ao poder dos psicotropos, enquanto a ciência o procura dominar. No entanto, continua a ser muito difícil precisar que expectativa e que necessidades guiam os toxicómanos ocasionais ou assíduos para o seu produto favorito.
Certamente que o peregrino huichol não vê nos grandes hicouris que traz uma planta alucinogénea: o peyotl, esse pequeno cacto arredondado e ornamentado de protuberancias em forma de mamilo, não é para ele um remédio contra o tédio dos dias e a quotidianidade medíocre: é o seu deus que vai, todos os anos, religiosamente, adorar e colher. Este deus apareceu ao povo huichol no decorrer de um combate sangrento contra uma tribo vizinha; quando os Huichol viram que o combate lhes era desvantajoso, os vasos em que transportavam a água das reservas quebraram-se, acidente que lhes teria cerceado a retirada, através das extensões desérticas da Sierra Madre, se os vasos quebrados não se tivessem transformado numa planta maravilhosa que restituía força e coragem aos combatentes esgotados. A planta maravilhosa passou a ser o verdadeiro deus do povo huichol, que ao mesmo tempo abandonou os sacrifícios humanos por sacrifícios de flores e de plantas.
Depois desta intervenção divina, todos os anos um grupo de peregrinos huichol empreendem a longa peregrinação de quatrocentos quilómetros através da Sierra Madre para ir adorar o «deus do fogo, da luz e do vento», o «grande hicouri» (outro nome do peyotl); viagem esgotante, no decorrer da qual os peregrinos só se alimentam de peyotl, excluindo qualquer outro alimento. E embriagados de fadiga e de droga eles alcançam o local da colheita: ali, vários sacrifícios são oferecidos ao deus, que começa por se manifestar sob a forma de um grande veado, depois desvanece-se em fumo, deixando no seu lugar dois grandes cactos sagrados.
Depois da colheita, o grupo regressa para junto da tribo nas mesmas condições, tal como na ida; tempos depois começará a grande festa do peyotl, depois das caçadas rituais: acções de graças e danças sagradas sucedem-se durante mais de dois dias, apoiadas pelo poder divino da substancia sagrada, e a festa termina no terceiro dia, em volta do banquete da caçada ritual. A cerimónia purificou os índios e o seu deus garantir-lhes-á abundancia, paz e felicidade.
Este ritual antigo foi, certamente, combatido com energia pelos missionários cristãos, mas nunca desapareceu totalmente, apresentando-se nos seus aspectos exteriores, aos católicos, para reaparecer no final do domínio espanhol sob a sua forma original. Mais ainda, catolicismo e peyotl aliaram-se de estranha maneira no seio da Native American Church of North America: o peyotl infiltrara-se durante o começo do século XIX nas várias tribos índias da América do Norte e misturara-se pouco a pouco com os ritos da religião católica. Os membros desta igreja, hoje em número aproximado de 250 000, veneram Cristo e associam o peyotl à, comunhão. Teoricamente, o peyotl é um mediador entre o crente e Cristo, mas para muitos praticantes é o próprio peyotl que é Deus: é uma verdadeira experiência mística que é esperada da celebração cultural, tanto mais intensa quanto o grupo reencontra nesta ocasião a sua identidade profunda. Não obstante várias tentativas de repressão, a Native American pôde sobreviver e múltiplas tomadas de posição tolerantes foram publicadas a seu favor, emanando, por vezes, de eclesiásticos católicos.
O uso que os escritores Antonin Artaud, Aldous Huxley e Henri Michaux fizeram, nos seus últimos anos, do principal alcalóide do peyotl, a mescalina, pouca relação tem com a prática ritual dos índios huichol; no entanto, a sensação de purificação pelo êxtase não está ausente nos Europeus nem nos índios, mas nenhuma manifestação de angústia parece apoderar-se destes últimos. Convém, no entanto, notar que uma estranha e notável homologia sobressai das duas experiências: a que – sob a forma da longa marcha ritual de quatrocentos quilómetros – aparece como um jejum é também uma prova total do corpo e do espírito submetido à fadiga e ao peyotl.
Quando Henri Michaux escreveu As Grandes Provas do Espírito, é também de uma ascese e de um jejum da normalidade lógica que pretende dar noticia: «Eu gostaria de desvendar o normal, o desconhecido, o insuspeito, o inacreditável, o enorme normal. O anormal fez-mo conhecer. O que se passa, o número prodigioso de operações que, na hora mais descontraída, o mais vulgar dos homens realiza, sem desconfiar, não lhe prestando qualquer atenção, trabalho de rotina, de que apenas o rendimento lhe interessa e não os seus mecanismos, no entanto maravilhosos, bem mais do que as suas ideias, a que se apega tanto, tão medíocres muitas vezes, comuns, indignos do aparelho fora de série que os descobre e os maneja. Gostaria de desvendar os mecanismos complexos que fazem do homem antes de mais nada um operador.» A prova do espirito, mas também o ensaio do espirito (no sentido em que se ensaia um metal precioso), é o desvendamento do real invisível que é o verdadeiro real, a própria carne do real. Notemos também, de passagem, esta oposição, fortemente expressa por Henri Michaux, e que se afirma como tema dominante da atitude toxicomaniaca, entre a obstinação produtora e a visão do processo da operação, objecto de uma contemplação maravilhada. Este tema encontrará uma ressonância muito especial junto dos jovens americanos do Flower Power.
De facto, é necessário repetir muito claramente que as experiências de Henri Michaux – e, de uma outra maneira, as de Aldous Huxley ou de Timothy Leary – concernem particularmente os tempos de passagem do pensamento: «Ele entra no pensar. O pensar “entra” nele. Num momento, várias vezes, longamente presente em nada, em nada mais que nada, “tabula rasa” (não a do filósofo, sempre virtualmente plena, e que nada tem de assustador, onde simplesmente – prazer de rico – se convencionou consigo nele nada repor senão pouco a pouco, segundo uma certa ordem e sem nada deixar arrastar por cima, não), verdadeira tábua rasa, ele estava ali, onde nada se vê voltar, nada, nada, nada, e nem o menor sinal de que ali volte jamais o que quer que seja. Agora, sem pensar ainda em qualquer coisa de muito determinado, o momento do nada passou, é evidente, é certo. […] Dali a pouco, com outros inquietantes, martirizantes momentos, o seu pensamento estava oscilante, como que excêntrico ao seu cérebro, retido por não se sabe o quê, com algo de imanobrável, ou de estranho, fora de chegada, trapalhão, nocivo, semelhante a uma imagem mal focada, mais que tudo flutuante, oscilante. […] Acabado! As horas de ocupação passaram. Presentemente ele está sozinho no seu cérebro. Admirável impressão. Prazer intimo, de todos talvez o mais intimo, tão discreto por ser quase idêntico ao “eu”, colante indissolúvel ao ser em vida e cuja ausência é um essencial, indizível, incessante catástrofe. Unicidade reencontrada, que pechincha! Nele, em mais ninguém senão nele. O seu pensamento é actualmente pensado por ele, só ele, com exclusão de qualquer outro. Sem que esteja absolutamente à sua mercê, tem de lidar com ele, ele antes de mais nada, único manipulador.»
É aqui que têm de se acentuar certas diferenças e previsões: notar-se-á, com efeito, que Henri Michaux não faz da mescalina, o alcalóide do peyotl, um produtor de ideias ou de imagens; mais ainda, é a manutenção do suporte (outros diriam: «do sequaz») pessoal que aniquila – a droga. E o regresso ao pensamento «normal» efectua-se em termos de reapropriação de um si mesmo por um eu que já não se sabia assim: «Tem os cem poderes. Reencontrou-os. Porque pensar, é isso, e muito mais, é, entre outras operações, colocar os elementos no campo pensante, é saber estar sempre a pensar no adquirido de ontem, na impressão de há cinco minutos, de há um ano; é poder determinar um pensamento, fazer com que não escape, que não seja independente, insensível às vossas intervenções. É mantê-lo liberto dos precedentes.» Notar-se-á, de passagem, que para Michaux a definição essencial de «pensar» corresponde, mais ou menos, às «ideias claras e distintas» de Descartes, ideias que se trata de «ter» ou de produzir. Mas o regresso em «o pensar» não pode fazer esquecer a experiência precedente, senão prévia, que a mescalina tornou possivel: «Que era então que lhe aparecia há pouco de uma maneira tão particularmente clara e surgindo por si? Era a natureza única do pensar, a sua vida à parte, o seu nascimento súbito, o seu desencadeamento, a sua independência que o segura a cem côvados acima da linguagem, a que só se associa pouco, momentaneamente, provisoriamente, desajeitadamente. No melhor dos casos precedendo-o, indo ao seu encontro um instante para voltar a partir em frente, fazendo vinte vezes o caminho, ou cem vezes, em frente de lado (e ao lado), voltando para tornar a partir para mais longe, livre, nunca por muito tempo misturado a nada de verbal, ou de gestual, ou de emocional, ou estava verdadeiramente enterrado dentro ou nele confundido.»
Já é altura, para nós, de abandonarmos Henri Michaux às suas investigações, não sem antes observar que aquilo que ele pode aprender da mescalina ou do haxixe concerne tanto o pensamento chamado «normal» no seu desenrolar, no seu processo e nos seus poderes, como a natureza essencial do pensamento na sua liberdade absoluta, indeterminada em relação à ideia formulável e cartesiana, mas soberana no seu movimento próprio. É nisso que as experiências de Henri Michaux igualmente nos podem servir para entrever o sentido profundo da religião dos índios huichol; pelo peyotl, o índio liberta-se dos seus pensamentos e dos seus actos (bons ou maus) antigos. Desnuda-se de todo o seu eu e dos seus aluviões, regenera-se num Leteso que é a pura liberdade do pensar, a própria divindade. Assim, cada ano o reencontra puro perante a sua divindade como perante ele próprio, divindade que ele experimentou, sentiu e reconheceu ele próprio e que é mais do que o seu próprio êxtase perante a «natureza essencial do pensar».
Bem diferentes, ao primeiro contacto, parecem ser as descobertas que um Baudelaire, um Moreau de Tours, um Théophile Gautier ou um Gérard de Nerval fizeram do haxixe ou mesmo, por vezes, do ópio. Diferentes mas não opostas, se previamente se quiser ter em conta um certo desnível entre as preocupações de Henri Michaux (pelo menos no livro que citámos) e a sua preocupação de análise filosófica e o cuidado poético e quase pictural que permite entrever a narrativa de Baudelaire de um serão colocado sob o signo do dawamesk, espécie de doce de haxixe dotado de uma poderosa eficácia: «Os primeiros ataques, como os sintomas de uma tempestade muito tempo indecisa, aparecem e multiplicam-se no próprio seio desta incredulidade que de vós se apodera… As palavras mais simples, as ideias mais triviais ganham uma fisionomia bizarra e nova; surpreendei-vos mesmo por as terdes achado até agora tão simples. Semelhanças e aproximações incongruentes impossíveis de prever, os jogos de palavras intermináveis, esboços de cómico jorram continuamente da vossa infância. O demónio invadiu-vos; é inútil recalcitrar contra esta hilaridade, dolorosa como cócegas.»
Mas a alegria não dura mais do que um momento. Não tarda que o menor laço entre as ideias se torne imperceptível: um frio intenso instala-se no paciente voluntário, uma certa náusea apodera-se dele, uma grande fraqueza instala-se pouco a pouco, enquanto o indivíduo se encontra mergulhado no êxtase alucinatório: «É, com efeito, neste período de embriaguez que se manifesta uma subtileza nova, uma acuidade superior em todos os sentidos. O cheiro, a vista, o ouvido, o tacto participam igualmente neste progresso. Os olhos visam o infinito. O ouvido apercebe os sons quase inapreensíveis no meio do maior tumulto. É então que começam as alucinações. Os objectos exteriores ganham lentamente, sucessivamente, aparências singulares; deformam-se e transformam-se… Acontece, por vezes, que a personalidade desaparece e a objectividade se desenvolve em vós tão anormalmente que a contemplação dos objectos exteriores vos faz esquecer a vossa própria existência e em breve vos confundis com eles… Por um singular equívoco, por uma espécie de transposição ou de quiproquó intelectual, sentir-vos-eis a evaporar-vos e atribuireis ao vosso cachimbo (no qual vos sentis acocorado e apertado como o tabaco) a estranha faculdade de vos fumardes.» Depois chega a felicidade absoluta, «a beatitude calma e imóvel» que parece durar horas. Nesse momento, nenhuma acção voluntária já é possível ao drogado: «Desafio-vos», escreve Baudelaire, «a aparar uma pena ou um lápis, isso seria um labor acima das vossas forças.» De maneira que nenhuma transcrição simultânea dos fenómenos apercebidos é possível, mesmo ao poeta.
Ter-se-á notado, de passagem, que a alucinação se mistura com a identificação do objecto «alucinado», fenómeno extremamente frequente no emprego dos alucinógenos; aliás, é preciso notar a definição que Baudelaire dá da alucinação: «Um matiz muito importante distingue a alucinação pura, tal como os homens tiveram muitas vezes ocasião de estudar, da alucinação, ou, antes, do erro dos sentidos no estado mental ocasionado pelo haxixe. No primeiro caso, a alucinação é súbita, perfeita, só amadurece por acção da imaginação…» Distinção que não deixa de ter problema, como se verá a propósito das consequências dramáticas do abuso de LSD 25, mas que marca bastante claramente os papéis muito especiais que podem desempenhar na «viagem», seja devido ao haxixe ou ao «ácido» a personalidade mais ou menos rica do drogado e o ambiente mais ou menos favorável à aparição de alucinações e ao desenvolvimento de uma comunhão mais ou menos sensível entre os diferentes membros do grupo drogado.
O canhamo-indiano, Cannabis indica, é um dos psicotropos mais difundidos no mundo: muito pouco diferente do cânhamo têxtil, pode crescer em quase todos os climas, mas enquanto em país tropical segrega em quantidade importante uma espessa resina, que, descolada e enrolada, não é mais do que o haxixe propriamente dito sob a sua forma mais eficaz, a marijuana, essa é quase sempre constituída pelas sumidades floriferas ou frutiferas dos pés femininos (os mais ricos em alcalóides), por vezes dos pés masculinos (menos eficazes); em país temperado, o caule fibroso do cânhamo não segrega já resina e só serve para… fazer cordas de cânhamo. Dadas as quantidades de Cannabis cultivadas no mundo, o haxixe é uma droga pouca cara, ainda que dificilmente manobrável, pois que é necessária uma certa quantidade do produto para obter um efeito suficiente, enquanto alguns miligramas de heroina bastam para satisfazer provisoriamente o toxicómano. Assim foi para o LSD 25 que se voltaram, por 1960, os adeptos americanos do Flower Power, os hippies.
Em 2 de Maio de 1938, Albert Hofmann, doutor químico alemão, prossegue as suas investigações tendo em vista sintetizar um tonicardiaco por analogia com a molécula de nicetamida, essa bem conhecida: a uma solução de ácido lisérgico, extraído da cravagem do centeio, doença muito conhecida da planta, acrescenta uma composição de dietilamida: o Lyserg Saure Diethylamid n.° 25 nasceu. A proveta contendo o novo corpo ficará esquecida durante cinco anos. Foi apenas em 1943, que, fortuitamente, Hofmann a volta a encontrar, em 16 de Abril; não sabendo já o que contém, engole um pouco da substancia: uns minutos depois é preso de profundo delírio, que visões coloridas assombram, e é obrigado a cessar toda a actividade. Pouco depois renova a sua experiência e obtém os mesmos resultados. As primeiras observações médicas só serão publicadas depois da guerra, para evitar que os nazis se apoderem da descoberta para fins militares: um litro do produto é suficiente para enviar «em viagem» toda a população parisiense.
Desde o início destas experiências, vários sábios pensaram que o LSD 25 seria susceptível de tratar, e talvez curar, as grandes doenças mentais. Nesta via, numerosos foram os que se lançaram ao trabalho, sem grande resultado até agora.
Ora, em 1959, um jovem doutor em Psicologia, Timothy Leary, católico irlandês convertido ao hinduísmo, entra no Centro de Investigação sobre a personalidade, no Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard. É ele quem vai dar ao LSD a sua reputação internacional e suscitar um dos fenómenos sociais mais estranhos e mais discutidos dos cem últimos anos, o fenómeno hippie.
Em 1960, no México, Timothy Leary faz a experiência dos cogumelos alucinógenos, de que a leitura de Aldous Huxley, o grande filósofo britânico, lhe dera a saber os efeitos maravilhosos. Huxley, efectivamente, exprimira já em duas das suas obras, As Portas da Percepção e O Céu e o Inferno, a sua confiança no papel benéfico que a absorção de certas drogas podia desempenhar no desenvolvimento da espiritualidade de certos indivíduos. Leary encontra, em 1961, o escritor toxicómano e estabelece com ele estreitos laços. Durante este tempo, prossegue na Universidade de Harvard as suas investigações sobre a «personalidade» e faz com que estudantes seus voluntários) absorvam psilocibina. Mas os professores da Universidade proíbem estas práticas; em vão, pois que à psilocibina sucede o LSD 25. Mas a partir de 1962 o LSD espalha-se pelos campos e pela Califórnia, onde faz numerosos adeptos. Pelo Outono desse mesmo ano, Leary funda o seu primeiro movimento, a International Federation for International Freedom.
Demitido da Universidade, em 1963, Leary funda, pouco depois, a Revista Psicadélica, primeiro centro catalisador e órgão de imprensa do movimento hippie: a ciência e a religião misturam-se definitivamente numa mística que se estende rapidamente por todas as camadas de adolescentes dos Estados Unidos. Mas bastante depressa os perigos do LSD alertam a opinião: vários crimes são cometidos na sequência do LSD parties e numerosos são aqueles que não conseguem fazer uma «volta de ácido» completa e se enterram em sintomas esquizofrénicos ou paranóicos duradouros. No entanto, até 1970, o movimento hippie ganhará partidários, atingindo mais de dois milhões de simpatizantes, tendo usado pouco ou muito da droga. Em consequência da repressão extremamente violenta da Policia Federal, as divisões que sobrevieram no interior do movimento e da politização crescente dos jovens americanos que estes dois factores originam, a mística hippie perde terreno em proveito de uma ideologia mais militante e mais violenta. Em Maio de 1971, Timothy Leary, de novo encarcerado, consegue fugir e, admitindo por sua vez a necessidade do recurso à violência para chegar a uma autêntica espiritualidade, vai ao encontro do estado-maior das Black Panthers, então estabelecido em Argel.
A importância desta vaga toxicomaníaca nos Estados Unidos (e em bem menor grau na Europa) está estreitamente ligada à sua amplitude e à natureza dos produtos utilizados: vários milhões de jovens americanos ultrapassaram, assim, os limites habituais do espírito humano (seja qual for o sentido desta superação). Ora é bem difícil determinar se a ideologia ou a mística revolucionária, mas não violenta, religiosa, mas não confessional, que partilharam os «filhos das flores» foi a causa ou a consequência do uso da droga nos Estados Unidos – da droga, ou antes, das drogas, pois que Timothy Leary considerava como também libertadoras o LSD, a psilocibina, a mescalina ou a DMT. Também libertadores, quer dizer, também psicadélicos, exaltando da mesma maneira os poderes do espírito. É psicadélico, segundo Leary, todo o produto, mas também toda a disciplina susceptível de produzir uma expansão da consciência: com a continuação, e de uma maneira perfeitamente comercial, o termo ganhou uma extensão muito vaga para designar tudo o que pudesse lembrar as sensações apercebidas sob o LSD, tudo de que os jovens hippies gostassem, vestuário, música, etc. De facto, o vasto movimento que animou durante mais de oito anos os Estados Unidos parecia bem próximo dos grandes movimentos messiânicos dos tempos passados: trata-se de trabalhar para a vinda de uma humanidade nova, pura, amante, liberta das proibições e dos tabus como dos imperativos de produção e de poder.
Apenas a experiência interior, a revolução interior, pode conduzir cada indivíduo a este estado de purificação, de amor ou de liberdade. Porém, esta revolução interior pressupõe um caminho traçado: o LSD 25, efectivamente, provoca muitas vezes sensações terrificantes, uma intensa despersonalização, uma perda de referências espaço-temporais. Antes de Timothy Leary, Aldous Huxley revelara na sua principal obra, As Portas da Percepção, que «frequentes são na literatura da experiência religiosa as referências aos sofrimentos e aos terrores que oprimem aqueles que, com demasiada pressa, afrontaram face a face o mysterium tremendum e aproximara estes pavores estes terrores das provas suscitadas pela droga, Timothy Leary, nesta óptica mística, compreendeu que era necessário ao neófito toxicómano um apoio ao longo da sua viagem: não só insistiu no facto de que a presença de outros adeptos da droga, estivessem ou não «em dose», era benéfica à viagem, como ainda compôs, inspirando-se no Livro dos Mortos Tibetano e no Tao To King, um autêntico manual da experiência interior, A Experiência Psicadélica, seguida em breve pelas Orações Psicadélicas. Estes dois livros eram destinados a apoiar os novos adeptos no decorrer daquela verdadeira agonia do eu que a absorção de LSD origina. Enfim, o carácter profundamente religioso – ainda que totalmente sincrético – dos passos do profeta, do shazam Leary.
Assim, o uso dos alucinógenos parece estar ligado a duas atitudes fundamentais do espirito humano, não contraditórias, mas, no entanto, bem diferentes: na primeira, o indivíduo pede aos psicotropos um aumento da sua própria sensibilidade, uma descoberta dos elementos mais ínfimos deste processo, que é o pensamento, uma compreensão e uma experiência do «fenómeno pensante» no estado puro; na outra, oferece-se a uma perda de si mesmo e do mundo que julga conduzir a uma redescoberta radicalmente diferente da totalidade na sua unicidade. Neste sentido, é possível admitir que os psicotropos alucinógenos são fundamentalmente drogas do espírito, na medida em que se dirigem à sua actividade como tal, em que pretendem satisfazer um desejo intelectual, moral e afectivo.
Mas às «drogas do espírito», consideradas como capazes de o abrir a mundos inexplorados, seria tentador opor as «drogas do corpo», principalmente o ópio e seus derivados, morfina e heroína – «drogas do corpo» porque originalmente estes produtos foram utilizados para fins medicinais. Galeno vulgariza na Roma antiga o uso do ópio sob o nome de «teriaga», remédio susceptível de apaziguar todos os males, que fez o seu caminho através dos séculos, para vir a ser o láudano, sedativo da dor e da ansiedade. Recentemente ainda o ópio era o componente de base do elixir paregórico correntemente utilizado para lutar contra as diarreias. A morfina, principal alcalóide do ópio, depois da heroína, derivado de síntese da morfina foram e são ainda os analgésicos mais poderosos da farmacopeia. Mas nenhum destes produtos tem efeito alucinógeno. É certo que o ópio proporciona uma leveza, uma agilidade mental e imaginativa que constituem um dos seus atractivos mais fortes. Porém, esta capacidade está em relação directa com a inteligência e a subtileza do fumador. Claude Farrère, ele próprio opiómano convicto, e Thomas de Quincey, autor de Confissões de Um Comedor de Ópio, comparam o ópio a uma estalagem espanhola, onde só se encontra o que para lá se levou: «Se um homem que só fala de vacas se torna opiómano, ele só sonhará com vacas.» Porém, o ópio traz serenidade e tranquilidade. Todos os limites se diluem, a euforia instala-se, o espírito funciona sem esforço, surpreende-se com os seus receios e as suas angústias passadas. Enfim, todas as coisas se tornam indiferentes.
A heroinomania é a outra forma dominante das toxicomanias devidas ao uso dos estupefacientes. Mais dura que o ópio, a heroína proporciona o flash, sensação intensa de prazer total muitas vezes comparado a uma espécie de orgasmo generalizado. À «cava» sucede um episódio de bem-estar intenso, mais ou menos segundo os indivíduos e a dose absorvida. Só é dotada de um fraco poder hipnótico, não proporciona qualquer agilidade de espírito, mas origina impulsos violentos que lhe garantiram êxito junto da beat generation e dos rockers americanos.
Ter-se-á compreendido quanto estes produtos estupefacientes se distinguem dos produtos alucinógenos; ora não só estas drogas não proporcionam qualquer visão, qualquer alucinação como ainda a necessidade a que levam nada tem de comum com o desejo mental que os alucinógenos podem suscitar. Trata-se de uma necessidade física de bem-estar, do desejo de uma plenitude corporal sem a qual a vida já não apresenta qualquer interesse. Certamente, o letrado chinês ou o amador de arte europeu retirarão um prazer intelectual extremamente requintado, sonhando, depois de uma cachimbada de ópio nas suas obras de arte preferidas, mas a falta física aumenta sem cessar e com ela a decadência física e depois a moral.
Nestas condições, parece claro que os estupefacientes não podem suscitar qualquer verdadeira superação intelectual, qualquer novidade mental, mas simplesmente, e no melhor dos casos, uma espécie de exaspero da sensibilidade.
Como, no termo deste bosquejo, avaliar o valor ou o perigo do uso dos produtos psicotropos? Em que termos, igualmente, dele nos apercebermos, quando, no caso mais claro, o dos alucinógenos – o alargamento da consciência procurado como tal – exclui a linguagem e desemboca num «puro pensamento», nitidamente distinto da linguagem? Igualmente seria uma aposta querer fazer a apreciação do uso da droga em termos estritos de proveito intelectual ou outro. Certamente que alguém se «droga» por alguma razão, talvez mesmo com uma finalidade; porém, as razões são tão confusas, indo da angústia da solidão à fraqueza do eu, passando por um certo desejo de aniquilamento, que é pouco fácil discernir um sentido comum detectável através de todas as formas e de todos os casos de toxicomania. Mas, sobretudo, é que a droga, último tabu social, objecto de uma repressão constante, factor evidente de marginalidade, representa em si mesma, sob a sua forma mais imediatamente material, um salto num algures que a sociedade constitui em mundo fechado, encerrado sobre si mesmo, dominado exclusivamente pelo produto psicotropo. Tentar avaliar o que as experiências alucinogéneas puderam trazer à pintura contemporânea, à música atonal ou electroacústica é um sofisma de comerciantes, muito bem compreendido, em suma, por estes. Com efeito, que dizer da pop music, do cinema de Andy Warhol, dos light-shows senão que estes modos de expressão encontraram um terreno próprio ao seu desenvolvimento junto da juventude contemporânea, seja ou não «drogada», e que os seus autores ou factores só raramente ligam a sua produção ao trip, enquanto saúdam em Xénakis, Jérôme Bosch, William Blake ou Aubrey Beardsley os verdadeiros antepassados do «psicadelismo»? O próprio Salvador Dali, em quem Timothy Leary vê o autêntico artista psicadélico, não dizia: «Nada me aborrece mais no mundo do que aqueles cujo hábito é contar os seus sonhos ou as suas alucinações, não sendo nenhum deles capaz de fazer surgir uns e outros?» E acrescenta: «Eu nunca me droguei, pois que eu sou a droga. Eu não conto alucinações, provoco-as. Tomai-me, eu sou a droga, eu sou alucinógeno.»
Tem assim de se compreender que se seria presunçoso dizer que a arte de Baudelaire ou de Nerval ou as análises de Michaux nada devem ao uso dos psicotropos, é muito pouco provável que eles lhe devam muito. Em contrapartida é conveniente compreender que, se a toxicomania contemporânea pode aparecer como um jogo, um ritual ou uma religião, ela cria por este facto um espaço fechado. Ora um tal espaço fechado, e tornado ainda mais fechado pelo facto da sua marginalidade social e moral, é, nem mais nem menos, uma prisão que, por muito voluntária que seja, não deixa, por isso, de ser um lugar fora do mundo e do seu dinamismo. Que a procura de um tal «mundo fora do mundo» possa constituir uma verdadeira contribuição para a personalidade depende bem mais desta que das substancias empregadas, e bem pouco ali encontrarão oportunidade para desabrochar as suas faculdades, enquanto tantos outros ali se encontrarão para sempre prisioneiros do seu aniquilamento voluntário.
Olivier Juilliard